quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Vida no campo

Vida no campoJoaquim sempre pensou bem diferente do pai, o “Seu Pedrão”, homem das antigas, cabra bruto que sabia o que queria da vida.

Seu Pedrão mantinha crioulos em sua propriedade. Com baixo custo e grandes trabalhadores, eram ótimos especialmente na hora de manejar o gado leiteiro, a menina dos olhos do dono daquela fazenda no interior do Rio Grande do Sul.

Ele não só os tinha como também se vangloriava disso.

Contava vantagens, falando para quem quisesse, ou não, ouvir:

- Crioulo é tão bom que todos tinham que ter, ao menos, um à sua disposição.

Joaquim, rapaz mais da cidade e antenado às coisas modernas, só via problemas naquelas ideias do pai, as quais lhe eram impostas e estava fadado a ter que aceitá-las - como enfrentar o Seu Pedrão?

O jovem queria era distância daquele mundo em que ele se sentia tão escravo quanto os crioulos que, querendo ou não, trabalhavam nos sete dias da semana, sem feriados, sob chuva ou sol forte e enquanto durasse a luz do dia - por vezes, estavam na lida mesmo depois de anoitecer.

- Por que Juca? Por que você é contra termos esses crioulos aqui na fazenda. Perguntava um pai esperançoso de que suas ideias fossem aceitas.

E continuava: - eles são ótimos, são baratos e muito prestativos. Se ficam meio rebeldes, o uso do chicote faz um efeito ótimo e eles voltam a seus lugares e a serem plenamente obedientes.

Definitivamente não compartilhavam da mesma opinião.

Aquilo não era o século XVIII; estavam em pleno século XXI e o pai ainda falava em chicote!

Para Joaquim, um grande absurdo.

Buscava a cumplicidade da mãe e das duas irmãs, mas de nada adiantava. Jamais elas iriam contra o chefe da família.

Com o irmão não poderia contar de forma alguma. João tinha o mesmo pensamento do pai e, com seu próprio dinheiro, já havia comprado uns quatro e posto para trabalhar na fazenda.

É, não dava mesmo para contar com o irmão. Estava sozinho naquela empreitada.

O sonho era partir dali, ir de uma vez por todas para a cidade, abandonar a vida no campo, uma vida para a qual ele realmente não havia nascido.

Para tanto, estudou com afinco. Queria ser alguém na vida, bem longe daquilo tudo.

Iria à fazenda apenas para matar a saudade da família, mas longe de todo e qualquer tipo de trabalho no campo.

Com o tempo, o rapaz atingiu seu objetivo. Mudou-se para a cidade, ingressou na faculdade de direito e, como melhor aluno da turma, logo conseguiu um estágio muito bem remunerado.

Trabalhava e era dignamente pago por isso. Seu sustento estava garantido e já podia dispensar a ajuda da família. O que fez mais do que depressa.

Libertara-se de vez da vida no campo, mergulhando de cabeça no século XXI. Tudo o que ele queria.

Não havia mais mato, plantação, gado, chicotes para forçar o trabalho, acordar de madrugada e dormir super cedo, aquele cheiro horrível... tudo havia ficado no passado.

A vida dele era outra, bem melhor.

Mas, estranhamente a fazenda não saía da cabeça de Joaquim e era difícil conviver com aquele sentimento.

Ele sabia que havia algo naquele estilo de vida que os pais e os irmãos levavam que tinha de mudar.

Mudar aquilo, levar a modernidade ao local, uma melhoria na vida, especialmente da mãe e das irmãs era responsabilidade dele.

O problema: como enfrentar a cabeça dura do pai?

Soube, por um amigo, que iria acontecer uma feira em Passo Fundo, cidade também ao norte do estado e não muito longe da fazenda dos pais, a Agrotecnoleite estava prestes a abrir as portas para visitação.

Era uma feira que visava a melhoria da qualidade da produção de leite no estado, com tecnologia avançada e equipamentos tanto para o gado quanto para a agricultura.

Plano bolado, estratégia pronta, fez contato com o pai.

- Pai, neste final de semana estou indo para casa. Vou buscar o senhor e o João para levá-los a um lugar especial. Tenho certeza de que vão gostar. Está marcado.

Desligou sem dar tempo para reclamações ou perguntas.

No sábado, logo pela manhã, lá estava Joaquim e, como não era mais aquele menino franzino e sim um homem feito e independente, “sequestra” o pai e o irmão. Estavam meio relutantes, mas cederam.

Na feira, os olhos da dupla fazendeira brilharam como o sol e os dois ficaram maravilhados com o que viram.

Não eram contra a modernidade, apenas não tinham a cultura necessária para conhecê-la.

Quando notaram como poderia ser a vida usando tudo aquilo que existia, cederam aos desejos de Joaquim.

Joaquim via ali um novo pai e um novo irmão.

Os três analisaram e estudaram todas as possibilidades, o custo e o benefício e, como dinheiro não era problema, já que ganhavam e não gastavam, puderam adquirir tudo aquilo que seria necessário para mudar a vida na fazenda.

Novos galpões para ordenha, agora mecanizada, máquinas plantando e colhendo, a produção aumentando... tudo novo na fazenda.

Até a casa ganhou uma reforma completa e o antigo fogão à lenha virou peça de museu.

As mulheres curtiram muito os novos aparelhos: fogão, freezer, forno micro-ondas, forno elétrico, televisor que pegava vários canais e não só alguns poucos...

Seu Pedrão agora ia para cima e para baixo pilotando uma picape cabine dupla com tração nas quatro rodas.

Joaquim sentiu-se realizado. Não que, por não gostar, achasse o modo de vida da família errado. Ele sabia que eles poderiam ter uma vida melhor - exatamente esta que tinham agora - só que eles não se tocavam disso.

E quanto aos crioulos?

Ora, eles trabalham bem menos e são até mais usados para diversão, mas continuam por lá, afinal - e em especial no Rio Grande do Sul - é a raça de cavalo certa para a lida no campo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O fim da solidão

SolidãoFausto morava no interior, em uma pequena cidade no Vale do Paraíba. Para os poucos habitantes, o sentido da palavra amigo possuía um peso gigantesco, haja vista que entre os amigos havia confiança, cumplicidade e invariavelmente sempre podiam contar uns com os outros.

Contudo, o jovem tinha problemas de relacionamento devido à extrema timidez. Era muito retraído e isso causava uma grande dificuldade para fazer amigos.

Praça cheia de gente, bandinha tocando no coreto, pipoca, algodão-doce, churros, balões de gás, pessoas falando ou dançando ou falando e dançando, muita diversão em qualquer festividade no pequeno município e lá estava ele, em meio daquele mar de gente e sentindo uma solidão angustiante.

Tinha inveja das pessoas que se confraternizavam.

Sofria sozinho, sem a compreensão dos pais que, ao invés de compreender, repreendiam.

Tempo de faculdade, queria ser advogado ou delegado de polícia e mudou-se para uma cidade maior. Campinas era um mundo totalmente diferente, muito maior que a pequena Jacareí.

Novos lugares, gente nova, mundo novo e a mesma e velha solidão.

Mesma? Antes fosse. Com tanta novidade ela pesava ainda mais.

As noites eram bem tristes para ele. Queria desabafar, chorar em um ombro amigo, ou apenas jogar uma conversa fora mas... com quem? Estava ali, mais uma vez, sozinho com seus pensamentos.

Só podia conversar com seus próprios botões.

Enfiou-se nos estudos como uma fuga, algo bom por um lado; ia cada vez melhor na faculdade.

Outro problema: ser ótimo aluno era motivo de orgulho para os professores, mas causava inveja aos colegas que o tratavam como um nerd (geek nos dias de hoje), causando ainda mais afastamento.

Mesmo amadurecendo, não conseguia vencer a timidez e foi aprendendo a conviver com aquela solidão, porém a necessidade de um amigo era sempre presente.

Certo fim de tarde, passeando pela Praça Carlos Gomes, próxima à Prefeitura, encontrou-se com Billy.

Billy, jovem, molecão solto e brincalhão, nada tinha de tímido, era, para Fausto, o superlativo absoluto do antagonismo, mas havia simetria naquilo.

Houve uma empatia imediata, dava a entender que ele compreendera de imediato os problemas de Fausto e passaram a caminhar juntos.

Fausto sentiu-se tão livre e feliz que passou a falar pelos cotovelos. De Billy quase não se ouvia nada. O que seria uma conversa passou a ser um monólogo, com uma outra interrompida pelo atencioso ouvinte.

Sentaram-se em um banco, brincaram, relaxaram e se divertiram. Há muito tempo Fausto não tinha um período tão gostoso em sua vida.

Depois de umas duas horas, Fausto teve de se despedir e voltar para casa - havia prova no dia seguinte e tinha de rever algumas matérias - mas não foi sem enfatizar:

- Amanhã nos vemos por aqui. Está marcado.

Aquele encontro fortuito tinha sido bom demais, precisava ser repetido e o fato de Billy ser morador de rua teve peso zero no relacionamento entre eles, pois ele fizera muita diferença na vida daquele futuro advogado.

E assim passaram-se alguns dias e a amizade fortalecendo-se.

Porém, Billy deu uma sumida. E caiu a ficha: não sabia como achar o amigo. Onde ele passava as noites? Realmente não tinha família?

Depois de uns três dias, lá reaparece Billy. Desta vez, meio sujo, cansado e um tanto machucado.

Fausto sequer quis saber o que havia acontecido; o importante era mostrar que amizade verdadeira é pra valer. Abraçou o amigo e, condoído, levou-o para casa onde um bom banho esperava por Billy e teria os machucados tratados.

Depois disso, a amizade fortaleceu a tal ponto que Billy passou a morar com Fausto naquele pequeno apartamento, ou melhor, apertamento em que o jovem morava desde que chegara à cidade. Agora ele tinha um teto sob sua cabeça.

A solidão deu um tempo na vida de Fausto. Respirava um ar diferente, cheio de amor e alegria.

Arranjara um amigo, finalmente tinha alguém que o ouvia e o compreendia.

Passava horas desabafando e o novo amigo ali, quieto e só ouvindo, sem interromper e prestando a maior atenção. Ambos sabiam que era justamente disso que Fausto precisava. Desabafar.

Desde que passaram a morar juntos, a solidão perdeu de vez. Nunca mais houve um momento em que se sentisse sozinho, mesmo nas raras vezes em que estava só.

Sabia que Billy estava por ali, sempre pronto para o que desse e viesse.

“Eita vida boa. Por que não o encontrei antes?” Pensava, um todo feliz, Fausto.

Tudo aquilo, somado ao fato de ter a cama dividida com um amigo, era um tipo de vida novo para ele, mas... e daí? Era feliz e isso era o mais importante.

Falou do novo amigo aos pais. O pai rejeitou a ideia, não gostou, dando a desculpa de que o filho tinha de focar somente nos estudos.

A mãe foi mais compreensiva e acabou apoiando a novidade.

O jovem até melhorou na Faculdade de Direito. Passou a estudar mais e, feliz com o amigo por perto, tinha mais ânimo para enfrentar todos aqueles livros - o motivo não era mais para fugir à solidão, era outro e muito melhor.

Realmente era uma nova vida. Todas as vezes que chegava a casa, lá estava Billy esperando-o, fazendo-o rir, fazendo-o soltar-se, fazendo-o feliz.

Aquela era uma amizade baseada em um amor incondicional. Tinha ali um amigo que não se importava com sua timidez ou com o que fosse. Podia desabafar, dizer tudo a ele com confiança de que tudo morreria ali mesmo. Sua “tábua da salvação” era muito mais que um amigo.

Que mais esperar da vida?

O ânimo mudara totalmente. Só o fato de saber que ao chegar a casa seria muito bem recebido era o bastante para querer viver para sempre.

Tudo bem que o novo amigo não sorria, mas Fausto sabia que aquele abanar de cauda continha a maior das sinceridades, a maior demonstração de uma alegria verdadeira.

domingo, 19 de outubro de 2014

Viva a amizade

Viva a AmizadeAo descer a escadaria de sua casa, Amanda parou estática no patamar, olhou para a mãe e algumas lágrimas escorreram pelos lindos olhinhos azuis.

Mas, qual a razão disso? Por que teria Amanda chorado ao ver a mãe?

Voltemos um pouco no tempo...

Amanda era uma menina como outra qualquer. Bem... quase.

Na altura de seus 14 anos, tinha um grande futuro pela frente, mas antes de todo o futuro, haveria a festa dos 15 anos, a qual estava programada para acontecer junto com as das amigas Rita, Marisa e Léa. Elas formavam um quarteto inseparável.

Todas fariam 15 anos em uma distância muito curta de tempo e comemorariam com uma grande e única festa.

A diferença entre o nascimento delas não chegava a três semanas.

Conheceram-se no primeiro dia de aula, ainda na pré-escola, e nunca mais se largaram.

Faziam tudo juntas e a cada encontro era uma conversa sem fim.

Embora sempre uma ao lado das outras, os assuntos eram intermináveis e brotavam do nada. Quem as visse, sem as conhecer, cria que há muito não se viam e tinham muita conversa para pôr em dia.

Mesmo quando estavam longe, estavam conectadas.

Valia de tudo; desde o velho Skype, passando pelo SMS, pelo Instagram, pelo Facebook, até o Whatsapp e o que mais aparecesse. A ferramenta não importava, desde que se comunicassem.

A vida naquela cidadezinha do interior paulista, às margens do Rio Paraíba, era tranquila, cujo sossego somente era quebrado por algum apronto do quarteto junto com outros amigos.

Elas dominavam os adolescentes da cidade, chamados por eles próprios de a Gangue do Bem.

Claro, como jovens, sempre aprontavam das suas, mas em compensação, sempre estavam atentos para atender às necessidades de alguém.

Precisou? Logo aparecia um para ajudar.

Todavia, Amanda começou a perder peso, sentia-se mal com dores de cabeça além de uma estranha sensação de fraqueza.

Os pais a levaram para uma consulta ao médico que, ao olhar Amanda e uma rápida análise, sugeriu alguns exames específicos.

- Nada preocupante. Vamos fazer estes exames e verificar se minhas suspeitas têm fundamento. É muito no início e tudo fica mais fácil. Disse o doutor.

Como não se preocupar com um possível diagnóstico de leucemia?

Os pais, tentando parecer fortes perante a filha, estavam arrasados.

Os exames foram feitos e o doutor, algo que só acontece nas cidadezinhas do interior, foi à casa dos pais de Amanda com os resultados.

Dona Celeste chamou a filha, que estava no quarto, no andar de cima.

Bem, voltemos ao início...

Ao descer a escadaria de sua casa, Amanda parou estática no patamar, olhou para a mãe e algumas lágrimas escorreram pelos lindos olhinhos azuis.

Ao ver o médico e a expressão da mãe, teve a certeza de que, para tristeza de todos, os resultados comprovavam as suspeitas do médico. Leucemia!

Enxugou os olhos e desceu as escadas.

Não acreditava no que lia. Tinha apenas 14 anos e nada daquilo era justo.

Com a família reunida na sala, o médico explicou tudo o que podia sobre a doença, a importância de estar no começo e respondeu todas as perguntas feitas.

Indicou um Oncologista amigo dele que poderia cuidar da Amanda da melhor forma possível.

E assim começava uma nova etapa na vida daquela jovem. Iniciava-se ali uma caminha de trajetória difícil e não sabida.

Amanda reuniu todas as suas forças e disse em voz clara e firme:

- Vamos em frente. Vamos vencer esta droga de doença.

Os dias foram passando e por causa de um dos tratamentos aos quais ela se submetia, a quimioterapia, os cabelos foram caindo.

Ela ficou horrorizada com isso.

Como não havia jeito, a mãe a levou para São José dos Campos onde havia um especialista em perucas para pessoas com câncer.

Por algumas fotos enviadas previamente, foi confeccionada uma peruca bem parecida com o cabelo de Amanda.

Ao chegar, elas aprovaram a peruca, o pessoal da loja cortou os cabelos de Amanda, utilizando uma máquina número 3 e foram-lhes passadas todas as dicas de como usar, tratar e lavar os novos cabelos.

Ficara bem demais e Amanda voltou às ruas sem qualquer vergonha, algo que estava sentindo há algumas semanas. Ainda bem que eram férias escolares e não precisava ficar tão exposta, pensava ela.

As amigas acharam linda a peruca e até se divertiram bastante com Amanda, mas de forma alguma ela a tirava da cabeça, nem para as amigas, o que era respeitado.

A calvície forçada mexera muito com a cabeça da menina.

Chegara o grande dia. O dia mais esperado do ano, mas que correu um sério risco de não acontecer.

As amigas convenceram Amanda de que a vida continuava e tinha de ser bela como antes, e não haveria um porquê de não ser.

Com muita conversa, todas concordaram que nada, absolutamente nada, poderia estragar a festa delas - ou todas participariam ou não haveria festa.

Na hora combinada para irem ao salão do clube, as três amigas foram à casa de Amanda para buscá-la.

Dona Celeste chamou a filha, que estava acabando de se arrumar no quarto. Finalizou o acerto da peruca, prendendo-a bem para não correr o risco de cair ou mesmo sair do lugar e foi ao encontro da mãe.

Ao descer a escadaria de sua casa, Amanda parou estática no patamar, olhou para a mãe e, desta vez, muitas lágrimas escorreram pelos lindos olhinhos azuis.

A mãe, assim como o pai, também estava chorando.

As três amigas e todos os 15 casais formados pelos amigos mais chegados delas, estavam ali, aos pés da escada, esperando por Amanda.

Todos, homens e mulheres, de cabeça raspada.

sábado, 18 de outubro de 2014

Mais vida para viver... ...Mais sonhos para sonhar

ViverViver, sonhar, sonhar, viver...e assim vamos tocando a vida, o dia a dia.

Se navegar é preciso, Viver também o é, sim, Viver com “V” maiúsculo, pois é extremamente necessário ter-se qualidade de vida.

Achar que basta estar vivo para viver é coisa de acomodado, daqueles que não sabem o quanto podem almejar, sonhar, traçar objetivos e, o mais importante, realizar.

Esta é a galera que abre a janela e vê, além da banda, a vida passar. Sempre serão coadjuvantes, nunca protagonistas.

Viver, sonhar e buscar são a base para a realização. A realização é a grande causa do bem viver. Não adianta, por exemplo, ter muito dinheiro acumulado se não o aproveitamos para viver.

Havemos de lembrar das palavras de Dalai Lama:

“...Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde...”

Temos de ter dinheiro para viver e não viver para ter dinheiro.

Portanto, tracemos um objetivo de vida a ser buscado e, com força de vontade e ética, façamos por merecer alcançá-lo. Isto é realização, o que, por simples consequência, traz felicidade.

A meritocracia é fator importante para alcançarmos nossos objetivos. Assim haverá uma base forte o bastante para evitar que caiamos.

Se o alcance das metas traçadas não for meritório, se as alcançarmos sem nos importar com os meios, sendo fiéis à frase que representa o maquiavelismo em que o fim justifica os meios, fatalmente acabaremos por pisar ou atropelar quem estiver por perto para o usarmos em nossa caminhada.

Conclusão: não haverá base de sustentação e qualquer brisa poderá pôr tudo por terra.

Não é por aí. Todos em nossa volta têm de ser encarados como parceiros, amigos que caminham e crescem junto a nós.

Desta forma faremos nascer uma força praticamente invencível para alcançarmos nossas metas e lá permanecermos, sempre prontos para ir em frente, buscando novos objetivos, mas nunca voltando - andar para trás não leva a nada.

Não nos esqueçamos que o ontem já está perdido, o amanhã ainda não chegou e, portanto, é no hoje que precisamos fazer tudo, é no hoje que as coisas acontecem.

Não deixar para depois é uma lição dada desde 1967, na marchinha de carnaval de Vicente Longo e Waldemar Camargo, gravada por Francisco Egídio:

Simbora nós dois,
Simbora nós dois,
Que se pode fazer agora,
Não se deixa pra depois.

(bis)

Até a lua,
Já mandou nos avisar,
Que a noite é nossa,
Só até o sol raiar.

sábado, 13 de setembro de 2014

Amor platônico

Amor platônicoEmílio e os irmãos Ana Maria e Alfredo eram os amigos Super Bonder, viviam colados um no outro e, como diz o lema criado por Alexandre Dumas, era um por todos e todos por um.

Quando alguém queria achar um deles bastava saber onde estava qualquer outro. Viviam sempre juntos, para o que desse e viesse, e isso desde pirralhos.

A amizade surgiu quando ainda eram crianças, vizinhos.

Não havia, entre eles, essa diferença de homem e mulher. Eram amigos e brincavam de tudo, de cowboy a casinha; o que importava era estarem juntos, dividindo brincadeiras, lanches, peraltices, alegrias e tristezas.

Com o tempo passando e eles, óbvio, crescendo, dentro do coração de Emílio também crescia um novo sentimento.

Nunca deixaram de sentir amor, uns pelos outros, mas aquele sentimento era bem diferente de tudo aquilo que, o agora adolescente, experimentara. Não entendia bem o que acontecia, era algo mais forte, bem mais forte.

Mas, havia um problemão a ser resolvido: a forte timidez de Emílio.

Bastava querer falar, manifestar o sentimento e tudo travava. Não saía uma palavra da boca dele, não conseguia pronunciar nada senão murmúrios incompreensíveis.

Tentava em vão abrir-se com Ana Maria, mas era impossível. Precisava clamar por ajuda... nem isso conseguia.

Como fazer?

Passava o tempo e mantinha o mesmo sentimento, cada vez com mais intensidade e, junto, aumentava o temor de se pronunciar. Continuava tudo travando.

Bastava pensar no assunto e ficava perdido naquele mundo desconhecido, o mundo do amor, das juras, da cumplicidade entre dois, dividindo segredos que só eles conheceriam, um mundo diferente, feito só para os dois pombinhos.

O que ele não sabia é que Ana Maria começara a nutrir o mesmo sentimento.

Ela também era meio tímida, mas não tão retraída quanto Emílio e precisou de algum tempo apenas para criar coragem e conversar com ele.

Contou-lhe minuciosamente como tudo havia acontecido, como aquele sentimento maravilhoso de um amor intenso começara e como tudo aquilo mudara radicalmente a forma como ela o via.

Ela teve a coragem que faltou ao jovem rapaz. Como ela conseguiu? Perguntava-se, sem saber a resposta.

Sabia que ele também poderia ter se manifestado e só não o fizera pelo medo da recusa. Aquela maldita incerteza de ser ou não correspondido tolheu tudo. Medo bobo mas... invencível; uma barreira inquebrantável para ele.

Mas, Ana Maria deu o primeiro passo e tudo passou a ser diferente.

Começaram a namorar e, com certeza, algo naquela amizade de anos e anos mudou.

Doravante novos passos seriam dados, embora continuassem amigos, não era mais os três sempre juntos. Alfredo colocara-se em sua posição de cunhado e se recusava a ficar segurando vela para os dois.

E o tempo foi passando e, mesmo assim, Emílio continuava o mesmo tímido de sempre. Ana Maria até reclamava alguns beijos e, embora sempre atendida, ele ainda tinha dificuldades nesse campo.

E assim os foram levando a vida e ela, por puro amor, sempre com a maior paciência e entendendo a extrema e exacerbada timidez do, agora, noivo.

Casaram-se!

Para a viagem de lua-de-mel marcaram um cruzeiro que, partindo de Santos, percorreria alguns portos do Nordeste. Cabina espaçosa com tudo o que um jovem casal recém-casado precisava, além de outros itens que eles não precisariam, mas poderiam querer.

No dia do embarque, Alfredo os levou para Santos, ajudou-os com a bagagem e correu para a ponta da praia - queria ver o navio passando e dar um último aceno de boa viagem aos pombinhos.

Tudo havia sido combinado. O lugar em que Ana Maria e Emílio estariam e onde Emílio ficaria - não havia como Alfredo perder os dois de vista no meio daquela multidão de passageiros e eles também poderiam localizá-lo sem problemas.

Quando o navio chegou perto, Alfredo os viu de imediato e acenou.

Ana Maria foi a primeira a vê-lo e acenou com veemência apontando-o para Emílio.

Emílio, ao ver o cunhado sentiu um aperto no coração.

Em sua imaginação ele via os três de uma outra forma.

Via-se ali mesmo, naquela varanda da cabine, partindo para uma linda viagem de lua-de-mel com a pessoa amada e, lá embaixo na calçada, estaria Ana Maria acenando para eles.

Droga de timidez! Droga de medo!

Coração partido

domingo, 7 de setembro de 2014

Paulo Bregaro, o Feidípedes brasileiro

independencia2Imagem extraída do blog Semióticas

No alto, "Independência ou Morte" (1888), mais conhecido como “O Grito do Ipiranga”, óleo sobre tela de Pedro Américo (1843-1905). Acima, a identificação dos personagens principais em cena: 1. Sargento-mor Antonio Ramos Cordeiro; 2. Paulo Bregaro; 3. Francisco Gomes da Silva, o Chalaça; 4. Antônio Leite Pereira da Gama Lobo; 5. Brigadeiro Manuel Rodrigues Jordão; 6. Luís Saldanha da Gama; 7. Dom Pedro I; 8. Capitão-mor Manoel Marcondes Mello; 9. Pedro Américo (autorretrato); 10. Casa do Grito; 11. Córrego do Ipiranga; 12. Trabalhador anônimo

       Assim como o soldado grego Feidípedes que percorreu os 42km que separavam o campo de batalha de Maratona e Atenas, de forma praticamente ininterrupta, para avisar o exército ateniense acerca da vitória em Maratona e uma possível revanche dos persas, o que deu tempo para que Atenas se preparasse e rechaçasse os persas, temos no Brasil o Paulo Emílio Bregaro, ou simplesmente Paulo Bregaro como é conhecido; ele agiu de forma semelhante.

       Claro, há diferenças marcantes: Bregaro não caiu, morrendo de exaustão após cumprir suas ordens, foi a cavalo e não a pé e percorreu uma distância bem maior, entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, o que dá muito mais que 42,195km.

       Bonita introdução mas, qual o porquê de falarmos sobre Paulo Bregaro neste 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil?

       Isso é bastante simples - ele foi um importante colaborador para que Dom Pedro (que ainda não era I) desse o famoso grito “independência ou morte!”

Vamos às explicações.

       Em 1822 já existia o Correio-Mor no Brasil Colônia, contudo a entrega de correspondências era precária além da conta, o que seguiu até meados do século XIX e, devido a isso, as pessoas evitavam usá-lo, principalmente tendo de pagar pelos serviços.

       Dessa forma, davam preferência a usar a mão de obra gratuita dos tropeiros, bandeirantes ou até mesmo dos escravos.

       Contudo, um carteiro sobressaiu-se na história postal brasileira, apesar da total precariedade, ao levar uma carta de Dom João VI, com instruções da corte portuguesa e cartas de José Bonifácio, de Dona Leopoldina e de Chamberlain - agente secreto do príncipe. Sim, foi Paulo Bregaro o carteiro que viajou em companhia do Sargento-mor Antonio Ramos Cordeiro.

       José Bonifácio foi enfático na recomendação a Paulo Bregaro - há algumas versões, mas o sentido é o mesmo. Duas delas:

       “Arrebente e estafe quantos cavalos necessários, mas entregue a carta com toda a urgência".

       "Se não arrebentar uma dúzia de cavalos, no caminho, nunca mais será correio; veja o que faz!"

       E lá foi o mensageiro, viajando de forma praticamente ininterrupta, como fizera o grego há alguns séculos. Dá para imaginar o que foi esta viagem?

       Dizem as más línguas que, de fato, o interesse de José Bonifácio era que o mensageiro encontrasse Dom Pedro ainda em Santos para que a independência do Brasil ocorresse nas terras de origem dos irmãos Andrada.

Por mais cavalos que Bregaro e o Sargento-mor “arrebentassem”, o grito de independência, como sabemos, acabou acontecendo já em São Paulo, às margens do Riacho Ipiranga.

       Por esta entrega incomum, Paulo Bregaro dá seu nome a algumas ruas em cidades deste nosso Brasilzão e é Patrono dos Correios do Brasil.

       E por tudo isso, além de ser personagem esquecido de nossa história, é que este Blog presta esta homenagem, resgatando um dos heróis de nossa independência.

       Agora que já leu, brinque um pouco e teste seus conhecimentos sobre a história do Brasil. Clique no link abaixo:

Laurentino Gomes

sábado, 16 de agosto de 2014

O manezinho e os gatos

Gatos

Manezinho, assim chamado por ter vindo de Florianópolis. Chegara àquela pequena cidade do interior paulista há alguns anos.

Vivia só, meio retraído, não era de muita conversa. Ajudava a todos, estava sempre pronto para isso, mas fazia o tipo calado.

Às vezes, no domingo, fazia um churrasco em casa, simplesmente pelo prazer de assar uma carne.

Invariavelmente eram ele e o Bob, o vira-lata que dividia a casa com ele e, acreditava-se, tomava conta do lugar. Quem conhecia o cachorro sabia que não era nada disso; um bicho simpaticão e pacato.

Nada de convidados nos churrascos.

O dia a dia dele era da casa para o pet shop - era o dono do único pet shop da cidade -, cinema seguido de pizza às quartas-feiras e, muito raramente, uma cerveja com alguns conhecidos.

Todo bichinho que aparecia abandonado em sua loja, o Manezinho recebia com todo o cuidado, tratava e saía à procura de alguém que pudesse adotá-lo.

Como ele gostava muito de gatos, estes não paravam muito na loja, os cachorros eram mais demorados pois, em casa, bastava-lhe o Bob.

Demorava, porém, cedo ou tarde, sempre aparecia alguém para levá-los. Difícil mesmo era conseguir adotar um gato - não ficavam muito tempo por lá e a razão era bem simples: a maioria ele levava para sua própria casa.

Um cara tranquilo que, depois de muito tempo e de forma bastante gradativa, passou a conviver melhor com os vizinhos.

Por ser sempre prestativo, e pela atenção que dispensava aos animais, ele conquistara o respeito dos moradores da pequena cidade, os quais acabaram por convencê-lo a terminar com aquela timidez e a derrubar o muro de Berlim que ele construíra, passando a viver a vida de uma maneira mais solta, mais alegre e participando da comunidade.

Manezinho,  considerado o super-herói dos animais, especialmente pelas crianças, foi tomando gosto pela nova vida.

Começou a ter vida social, a frequentar o clube local, ir a reuniões... já não se sentia mais tão só.

Sua vida passou a ser mais colorida e até a frequência na loja havia aumentado consideravelmente.

O pet shop passou a ser uma espécie de ponto de encontro. Quem não tinha o que fazer, aparecia por lá para jogar uma conversa fora. O que ficou vazio foi a barbearia do Seu João, ex-ponto de encontro.

Nunca mais comeu a pizza das quartas-feiras sozinho.

E a vida se desenrolava de forma diferente. Apenas sua paixão pelos gatos não mudara.

Qualquer bichano que desse entrada na loja tinha um tratamento especial . Principalmente as prenhas. Todos tinham de nascer saudáveis, grandes e gordinhos.

Este amor pelos bichos era o que mais chamava a atenção do povo.

Até o churrasco de domingo começou a receber algumas visitas

Em um desses domingos, o filho de Ernesto, o melhor amigo de Manezinho, inquiriu o anfitrião:

- Ô tio, eu achava que você tinha um monte de gatos aqui na sua casa.

- Por quê? Perguntou o Manezinho.

- Ora, o pai sempre fala que o senhor traz todos lá da loja.

- Ah sim, trago mesmo. Adoro gatos.

- Então, onde eles estão? Cadê eles?

- É o que eu lhe disse, adoro gatos. Eles são uma delícia!

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Paz!

PazBom de briga é aquele que cai fora”.

Grandes e sábias palavras do compositor de Trem das Onze (um trem do Jaçanã que nunca saiu às 11 horas e sim por volta das 08h40min).

Adoniran Barbosa soltou essa frase já faz muito tempo, mas continua bastante atual - talvez até mais que antes.

O que vemos hoje em dia é de tamanha violência que realmente o melhor é deixar para lá, não importando o tamanho do oponente.

É muito fácil, principalmente nesse nosso trânsito louco, para qualquer um puxar uma arma, pelos motivos mais banais, e dar alguns tiros, com balas perdidas acertando até quem não tem nada a ver com o ocorrido.

Então, ser “macho” para quê? Já não bastam  todos esses assaltos acontecendo? Saidinhas de banco, sequestros relâmpago e tudo o mais?

Temos uma vida enorme pela frente e, antes de nos preocuparmos se vamos ser rotulados de covardes ou afins, vamos usar a cabeça, lembrando sempre que o raciocínio inteligente sobrepuja a violência ignorante.

Seja no trânsito, em um passeio, em um jogo... não importa, partir para a violência sempre acaba estragando a festa, interrompendo, no mínimo, a alegria e trazendo transtornos com alguns possíveis danos irrecuperáveis.

Temos de fazer valer a chamada cabeça fria em qualquer situação, crendo que se alguém está muito nervoso é porque talvez não esteja tendo um bom dia e, se nos enervarmos também, estaremos apenas alimentando um sentimento de ódio.

Assim, já que palavras acabam morrendo ao vento, vamos preferir que o “nervosinho” se extravase um pouco, ajudando a diminuir sua ira, a comprar uma briga.

Viver em paz, principalmente consigo mesmo, é bem melhor. Melhor até do que estar certo.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O menino que catava latas

Menino latasJosé nasceu pobre, pelas mãos de uma parteira, no coração de uma das favelas que fervilhavam naquela imensa cidade.

Brinquedos? Tinha-os, mas somente aqueles que ele próprio fazia ou inventava ou algum outro, já quebrado que aparecia por ali.

Assim, na vida de José, lata de sardinha era caminhão, cabo de vassoura, cavalo e por aí ia.

Ainda pequeno começou a frequentar o lixão com a mãe e os irmãos mais velhos.

A ler e a escrever aprendeu com uma tia, a qual já nas primeiras aulas, ficara espantada com a atuação, o interesse e a facilidade com que aquele menino franzino assimilava tudo.

As contas eram uma paixão à parte.

Uma noite, conversando com a mãe sobre as agruras da vida, ela lhe explicou que não havia agruras na vida deles. Era difícil, sim, ela concordava, mas, ao contrário de várias pessoas, eles tinham um lar, forças para viver e uma família que embora tivesse sido abandonada pelo pai, era bastante unida. Por isso, ela só tinha a agradecer.

Ao falar isso, a mãe acariciou-o na face e José notou aquelas mãos calejadas que nada lembravam as mãos de uma mulher. Sempre as vira antes, mas nunca reparara nelas como naquele momento.

Aquilo mexeu com o menino. Ele saiu do cômodo em que estavam (não podia chamar aquilo de sala) e foi chorar baixinho, tentando entender como a mãe conseguia.

Nisso, estancou o choro, olhou-se naquele pedaço de espelho quebrado, conversou consigo mesmo e tomou uma decisão.

Contava com 12 anos de idade, e, a partir daquela noite, continuou a ir para o lixão, mas com pensamentos bem diferentes daqueles de outrora.

Havia incutido na cabeça que aquilo não era vida para ele e, muito menos, para a mãe.

Com extrema facilidade, os cálculos fervilhavam e prosperavam em sua mente.

Sabia o que queria e como faria para tirar o melhor proveito daquela situação.

A vida dura havia maturado aquela criança, transformara-a em um jovem bastante ciente de suas responsabilidades.

Começou ali mesmo, no lixão, a desenvolver seu plano.

Chamou a criançada e propôs-lhes que pegassem todas as latinhas que encontrassem e as entregassem a ele. Ele iria cuidar de levar todo o material ao ferro velho, vender e depois pagaria o pessoal, tal qual uma cooperativa.

Convenceu a todas de que unidos, teriam mais força e, levando as latinhas, obteriam um preço melhor.

Como passo seguinte, foi a vários ferros velhos para fechar o negócio das vendas. Em um deles conseguiu um acordo excelente no qual, além de tudo o que levasse, ainda receberia uma comissão sobre o montante

E assim foi feito.

Sendo impossível pesar as latas no lixão, fez uns cálculos malucos em que pagava cada criança por lata catada - era o PLC de seu livro caixa.

O PLC era calculado com base na quantidade de lata por quilo e, no cômputo geral, ganhava uns 15% por quilo vendido que, somado à comissão recebida no ferro velho, chegava a um total de 20% sobre o valor de cada quilo.

Tudo o que entrava era dividido percentualmente. 60% iam para a mãe; 10% para os estudos; 5% para a diversão e 25% guardados de forma sagrada.

Para ele, não havia finais de semana ou feriado.

Aos sábados ia para a beira da represa onde, invariavelmente, os jovens deixavam várias latinhas para trás. Era só recolhê-las, com pressa, pois sempre havia a concorrência.

Nos domingos, era no campinho da várzea. Ajudava na lanchonete e guardava toda latinha consumida - duas fontes de renda, além das gorjetas.

Seis meses se passaram e José já levava as latinhas na caçamba de uma velha picape Fiat, adquirida com as poupanças e dirigida pelo tio Arnaldo.

Quando completou 18 anos, até o lixão tinha outra “cara”.

Aquele menino franzino expandira os negócios para além das latinhas.

Em um terreno próximo ao lixão, inicialmente alugado e depois comprado, montou uma central de triagem de lixo limpo na qual era separado tudo o que pudesse ser reciclado, mas que não fosse orgânico. Os principais itens eram alumínio, vidros, garrafas pet e papelão.

Enquanto montava a central de triagem, fez um trabalho de formiguinha, indo de casa em casa e conversando com o pessoal, primeiro dos arredores e depois com praticamente todo o bairro.

De forma persuasiva e citando várias justificativas amparadas pela conservação do meio ambiente, explicava que todo lixo limpo seria recolhido pela cooperativa do lixão, diariamente, para que fosse reaproveitado.

Bastava que o reciclável fosse depositado dentro dos sacos verdes que entregava ao final de cada conversa, pedindo que fossem postos na rua logo após a passagem do caminhão de lixo da prefeitura.

Com isso, o caminhão, a velha picape era coisa do passado, sempre dirigido pelo tio Arnaldo, passava pelas ruas recolhendo os sacos verdes.

Para José não havia moleza. Era trabalho de 10 a 12 horas diárias e escola à noite.

Com 25 anos de idade, José, formado em Administração de Empresas, não mais trabalha tanto, mas Trabalha - um dos primeiros a chegar e um dos últimos a sair.

Dono de duas usinas de reciclagem, deu emprego e estudo a toda aquela turma do lixão e é eternamente grato à sua mãe, uma guerreira que sustentou cinco filhos, sem marido, e fê-los homens e mulheres de bem, sem vícios.

Embora não se sinta realizado, pois há muito a ser feito ainda, José é feliz, especialmente por ter ajudado e melhorado a vida tanta gente.

A mãe? Ora, agora ela mora em um bom apartamento longe do lixão, com empregada, levando a vida que merecia há tempos, segundo dizeres do próprio José.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

O garoto que juntou dois mundos

Bilingue

O tão esperado nascimento de Ernesto foi motivo de festa na família.

O garotão chorou a plenos pulmões fazendo-se presente. Dos olhos do paizão, que acompanhara o parto, escorreram lágrimas de alegria.

Passados uns dois meses, com o bebezão crescendo firme e forte; algo estranho foi notado.

Ele dormia tranquilo no berço quando o vento fez com que a porta batesse com força. A mãe logo correu pois, com toda a certeza, aquilo iria assustar o bebê, fazendo-o acordar chorando.

O menino sequer se mexeu.

A mãe estranhou. Bateu palmas cada vez mais alto... nada.

Levaram ao médico que diagnosticou um grau de surdez do menino em mais de 90%.

Sem ouvir, o menino também não aprendeu a falar. Emitia sons ininteligíveis para a maioria das pessoas. Apenas os mais próximos, que conviviam o dia a dia com ele, o entendiam.

Passou a usar um aparelho, mas que não adiantava muita coisa. Ernesto estranhava aqueles sons misturados, os quais eram difíceis de identificar, e não o usava com frequência.

A comunicação era na base de ele tentar ler os lábios das pessoas, mas bastava um bigode um pouco mais comprido e a leitura labial era atrapalhada.

Ele desconhecia a Libras, Linguagem Brasileira de Sinais, e tinha dificuldade em comunicar-se também com outros deficientes auditivos.

Isso tudo fazia de Ernesto um menino sofrido, alguém que sentia o preconceito e vivia esforçando-se para fazer parte de um grupo.

Em silêncio, ele sofria ao ver os jovens da rua onde morava combinarem passeios ao shopping e, simplesmente, esquecerem-se de convidá-lo. Definitivamente aquilo não era bom.

Com o passar dos anos, uma novidade foi tentada: implante coclear.

Dirigiu-se a São Paulo e fez a operação, cara mas que valeria a pena - passaria a ouvir e, com isso, seria aceito normalmente no grupo de amigos.

Infelizmente Ernesto enfrentou algumas dificuldades no início e acabou deixando de lado o aparelho, fazendo com que a cirurgia não surtisse o efeito esperado.

Mais algum tempo e ele entra de cabeça na linguagem de sinais. Passa a frequentar os círculos dos deficientes auditivos, podendo comunicar-se com eles de igual para igual. Esquece o implante e vira parte do grupo.

Ao estar completamente engajado naquele meio, Ernesto percebe que algo não ia bem. Devia estar feliz pois era parte integrante de um grupo de amigos. Não entendia aquele sentimento.

Não entendeu até notar o mesmo preconceito sofrido diante das pessoas de audição perfeita, mas na ordem inversa - o grupo dos deficientes não se dava com os primeiros. Renegava-os.

Quem ouvia não era bem quisto naquele grupo e só o fato de ele um dia comentar que iria voltar a investir no implante coclear, para passar a ouvir e aprender a falar corretamente, foi motivo de desconfiança de alguns do grupo.

Ernesto não viu aquilo como um problema, mas sim como um mal que precisava ser mudado, e vencido, de ambos os lados.

Sem ligar para os comentários, voltou a usar o aparelho, frequentou fonoaudiólogos, aprendeu a distinguir os sons - acabou descobrindo que não era tão difícil quanto imaginara - e algum tempo depois já era dono de uma fala que todos entendiam sem maiores problemas.

Ele também aprendera a ouvir e passou a comunicar-se de forma fácil. Deu-se conta de que, antes de ser um deficiente auditivo, era bilíngue!

Em uma tarde de sábado, o shopping foi palco de um encontro marcado por Ernesto com os amigos, usando a desculpa de que iriam tomar um sorvete.

Lá estavam, sem que soubessem dos planos de Ernesto, os dois lados da moeda.

Primeiramente olhares desconfiados foram trocados, mas o valente menino soube se impor e mostrou a todos o valor de cada um e, principalmente, da possibilidade de uma convivência pacífica.

Claro que alguns problemas teriam de ser eliminados, mas o intuito daquela reunião era esse mesmo.

Ernesto, falando e gesticulando, explicou que todos poderiam conversar, era só eliminar as barreiras abstratas que cada um havia construído e tolhiam o bom relacionamento.

Claro, nem todos os surdos (assim identificados pelos “ouvintes”) poderiam passar a ouvir, mas todos aqueles que não eram deficientes auditivos (os ouvintes, como eram chamados pelos “surdos”) poderiam aprender Libras.

Aquele encontro foi um divisor de águas.

Com paciência, Ernesto foi dando dicas aos ouvintes, os quais logo se matricularam em cursos de Libras e em pouco tempo conversavam até entre si para praticar a nova língua.

Pelo lado dos surdos, aqueles com chance de passar a ouvir investiram e aprenderam, melhorando também a fala.

Algum tempo depois não existiam mais ouvintes ou surdos, apenas jovens formando um grande grupo de amigos.

O preconceito caíra por terra e todos concordavam:

Eram muito mais felizes assim.

domingo, 11 de maio de 2014

O Estupro

O Estupro MAI2014Meio tarde da noite e Cecília voltava da faculdade. Como sempre, pegou o mesmo ônibus, desceu no mesmo ponto e passou a caminhar as mesmas três quadras até sua casa.

Rotina para finalizar mais um dia de trabalho e estudos.

Mas, naquele fim de dia, algo lhe despertou a atenção. No silêncio da noite, havia um som que lembrava um choro de criança ou um filhote de cachorro.

Parou, prestou atenção e notou que aquele som vinha do prédio em construção distante duas quadras de sua casa.

Preocupada com o que pudesse ser, entrou no prédio para prestar a ajuda que pudesse, se fosse o caso.

Chamou por alguém... nada. Só o choro continuava e agora ela estava certa de se tratar de uma criança.

Mais alguns passos, e viu, num clarão, um rosto malévolo e sem qualquer ar amigável.

Na sequência, acompanhada do brilho da lâmina de uma grande faca, ouviu a ordem de não fazer barulho.

Mais 20 minutos e lá estava ela. Nua, sozinha, inerte, sem ação. Havia sido usada, sodomizada, estuprada de todas as maneiras.

Reuniu forças sem saber de onde, vestiu-se como pôde e foi para casa. De lá, um pai e uma mãe, extremamente chocados levaram-na ao hospital.

A partir daí, mais sofrimento.

Delegacia, BO, IML, exame de corpo de delito, interrogatórios... sentia-se um objeto. Queria calor humano, voltar para casa e tentar esquecer tudo aquilo.

Alguns dias se passam e ela é chamada à delegacia. Haviam prendido um suspeito e precisavam saber se ela o reconheceria.

Na delegacia, antes de ela chegar, o delegado chama o escrivão:

- Paulo Roberto, quero que você ponha mais quatro indivíduos junto ao suspeito. Só para termos segurança no reconhecimento.

- Tudo bem doutor, mas temos só três pessoas aqui na delegacia. Vai faltar um.

- Pegue alguém que esteja passando na rua. Diga que é para colaborar e não vai demorar nada.

- Ok, doutor.

Quando ela chega, vê os cinco “suspeitos” por um olho mágico e, de imediato, reconhece seu algoz.

Concomitantemente, um filme passa por sua cabeça. Revê cada detalhe, todas as cenas revestidas de brutalidade pelas quais passara.

- É o número três. Tenho certeza.

- Verdade, senhorita? Arguiu o delegado.

- Sim! Respondeu enfática.

- Temos um problema. Na certa você está confusa, pois o três não passa de um transeunte que pegamos ao acaso na rua e se dispôs a colaborar.

- Como assim? Perguntou uma incrédula Cecília.

- Ele é um pai de família - continuou o delegado - sem ficha policial, trabalhador e que só aceitou um pedido nosso para que participasse do reconhecimento fazendo-se passar por um dos suspeitos.

Em seguida, virou-se ao escrivão:

- Paulo Roberto, pode dispensar o sr. Acácio com nossos agradecimentos e desculpas.

Ela não se conformava. Aquilo não poderia estar acontecendo. Era um rosto que ficara gravado em sua memória - não havia engano.

Chorou ao vê-lo indo embora.

A mãe tentava conscientizá-la do engano pois, como o delegado falara, não era possível ser aquele homem. Ela estava sendo levada por impulsos oriundos dos sofrimentos pelos quais passou e ela precisava deixar a razão tomar conta.

Cecília mantinha pé firme: - É ele!

Paranhos, um investigador das antigas, achou muito estranha toda aquela convicção da moça e, por isso, resolveu seguir o cidadão.

Ao sair da delegacia, entrou em um bar e pediu um conhaque.

Paranhos entrou logo atrás e, casualmente, parou ao lado dele no balcão.

Puxou conversa dizendo que vira a cena, que a moça só podia estar equivocada devido ao trauma etc e tal.

Com a conversa, o investigador foi adquirindo a confiança daquele homem. Acácio, por sua vez, abria-se cada vez mais.

- Também fiquei chocado com a atitude dela. Quando topei ajudar jamais pensei que isso fosse acontecer.

- Pois é. Nós também e o coitado do delegado ficou sem saber o que fazer e achou melhor dispensá-lo logo. Com certeza é fruto do trauma sofrido. Temos de entender o lado psicológico em que ela vive no momento.

- É verdade, concordou Acácio. - Mas, venhamos e convenhamos, não é meu amigo? Como uma moça entra em um prédio em construção, tarde da noite, por que acha que ouviu o choro de uma criança? Há de se tomar muito cuidado com esse tipo de coisa.

- É verdade, “meu amigo”. Respondeu Paranhos. - Mas, me diga uma coisa: como você sabe desses detalhes se lá na delegacia ninguém falou nada sobre isso?

Sorte? Destino? Não se sabe, mas a faca encontrada em poder de Acácio e o exame de DNA provaram que Cecília estava certa.

sábado, 3 de maio de 2014

Por baixo do Bruto

Um ângulo diferente para se ver um Scania passando.

SCANIA BI-TREM conduzido pelo Claudenir, a quem agradeço a força e, claro, por não ter passado em cima da câmera. rrsss

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Lixo na lixeira

Apenas uma brincadeira com o Stop Motion.

Aja certo: lugar de lixo é na lixeira!

Afinal, se você não joga lixo no chão da sua casa, por que vai jogar no chão da “nossa casa”?

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Porto de Santos, um porto usado

Foto Raul SoaresO lado triste e humilhante da história do Porto

Há exatos 50 anos, na manhã de 24 de abril de 1964, um navio de casco negro apontou sua proa para a entrada do canal do estuário do Porto de Santos.

Puxado por dois rebocadores já que não possuía condições de navegar por si próprio, o navio, com o nome de Raul Soares, embrenhou-se pelo canal até as proximidades da ilha de Barnabé, onde fundeou sobre um banco de areia e ali ficou, estático, deitando sua sombra não só sobre as águas do canal mas por toda a Santos, simbolizando o que de mais terrível a ditadura poderia trazer para a cidade.

Em sua história, este navio reúne passagens gloriosas. Fora construído em 1900 na Alemanha e, batizado com o nome de Cap Verde, tinha capacidade para 488 passageiros e 100 tripulantes. Depois, rebatizado com o nome de Madeira, passou a ser utilizado como um navio misto - carga e passageiros - e, em 1925, já obsoleto, foi comprado pela companhia Lloyd Brasileiro.

Seus dias de maior glória aconteceram durante a II Guerra Mundial quando, como Raul Soares, transportou pracinhas da Força Expedicionária Brasileira para e da Europa.

Aposentado, recolhido e esquecido no cais de Mocanguê, no Rio de Janeiro, ele foi trazido para Santos pelo rebocador Tridente a fim de cumprir sua última e mais humilhante missão: servir, por ordem dos militares, como presídio no Porto de Santos.

Cinco dias após ter fundeado no canal do Porto, no meio da tarde, a lancha Bartolomeu de Gusmão, sob a atenta vigilância de soldados armados com metralhadoras, fazia o transbordo para o Raul Soares de seus primeiros “hóspedes”: 40 sargentos do exército que se tornaram os primeiros encarcerados no navio-presídio.

Centenas de pessoas acompanharam, do cais, o embarque dos primeiros “presos políticos” na tentativa de reconhecer entre eles alguns amigos ou parentes presos em algum lugar. Muitos desses amigos ou parentes realmente acabaram nos porões infectos antes que 1964 acabasse.

Em sua versão oficial, o governo alegava que o navio havia sido deslocado para Santos com o intuito de suprir a falta de presídios para abrigar as muitas pessoas detidas pela ditadura militar.

Contudo, mais forte que uma possível necessidade de fazer frente à crescente demanda de presídios, o Raul Soares era, acima de tudo, um símbolo colocado em uma cidade que, para os organizadores do golpe, representava grande perigo, afinal Santos era uma cidade que tinha vida cultural e política com brilho próprio, fazendo com que cada segmento fosse forte na conquista de seus espaços.

Em entrevista no final da década de 1980, pós-ditadura, Antonio Erasmo Dias, que em 1964, além de major do Exército, era um dos líderes militares do golpe de Estado na Baixada Santista, afirmou: “É claro que o Raul Soares não foi trazido para cá por necessidade de mais prisões. O motivo era psicológico, é evidente”.

Na visão dele, Santos era palco de um grande risco ao golpe. Era onde o esquerdismo adquirira uma força potencial que não existia no Brasil inteiro. “A Câmara de Santos era dominada pelos comunistas, o prefeito de Santos era ligado aos comunistas (...). Aqui tinha um tal de Fórum Sindical de Debates que parava Santos quando queria”.

Hoje, esta imagem de “Cidade Vermelha” ou ”República Sindicalista” que os militares queriam passar não resiste ao mais simples estudo histórico.

Com suas torturas físicas em que castigos impostos de forma gratuita eram proporcionais à rebeldia do preso e à coragem de reagir com dignidade aos maus tratos e humilhações e as psicológicas, quando dizia-se, por exemplo, que o navio seria rebocado para alto mar e nenhum preso voltaria, o Raul Soares foi um instrumento nas mãos dos militares desde aquele 24 de abril até 23 de outubro de 1964 quando foi desativado e a maioria dos presos foi libertada e processada, além de ter os direitos políticos cassados por dez anos.

Seis meses que deixaram uma mancha negra na história do Porto de Santos. Mancha que muitos preferem esquecer, mas que tem de ser lembrada até em respeito à memória daqueles que morreram, desapareceram ou sofreram a bordo daquele navio de casco negro.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Almas roubadas

A TrevaLauro teve uma vida tranquila até que completou seus 19 anos de idade.

A partir daí, coisas estranhas, muito estranhas começaram a fazer parte de seu dia a dia.

Tudo começou em um final de tarde de uma noite quente de verão.

Sozinho em casa e assistindo a um programa qualquer no televisor, sem dar-lhe importância, o rapaz sentiu um calafrio que gelou sua espinha.

Apesar de estranhar o ocorrido, Lauro não ligou para aquilo. Algo passageiro, imaginou.

Mas, a sensação permaneceu e o frio na espinha continuava.

Levantou-se, desligou o aparelho e foi tomar um banho, aprontar-se pois a noite prometia.

Ao entrar no banheiro, sentiu um frio imenso sem saber de onde poderia estar vindo, afinal era verão, não soprava uma brisa sequer e estava mesmo quente.

Ao tomar banho, ouviu algo que lhe pareceu sussurros dentro do banheiro.

Desligou o chuveiro, procurou auscultar com toda a atenção... nada. Silêncio total.

- O que foi isso? Parecia um choro, alguém cochichando algo com outro alguém... deve ter sido na vizinhança, imaginação minha, pensou consigo mesmo tentando tranquilizar-se.

Terminou o banho e, ao abrir a porta do box, pareceu-lhe ter visto um vulto escuro desaparecendo rapidamente. Aquilo fez o frio que sentia aumentar e o coração disparar com o susto.

Imaginação, com certeza. Vai ver era fruto do xampu que havia entrado em seus olhos deixando-os meio turvos, ardendo.

Enxugou-se e foi para o quarto.

Sentindo-se meio estranho e sonolento, deitou para um cochilo. Péssima ideia.

Foi tomado por pesadelos terríveis.

Seres para lá de estranhos começaram a formar-se à sua frente. Seres desfigurados de aparência tenebrosa que lhe esticavam as mãos como a pedir algo. Um cheiro muito estranho pairava no ar, um misto de flores velhas, velas e algo podre.

Acordou de sobressalto tentando entender tudo aquilo.

O resto dos dias foram iguais. As mesmas sensações o acompanhavam. Preferia ficar acordado a dormir, mas, não tinha jeito. Dormir era imprescindível e, aí, lá estavam eles novamente.

Com um sentimento de presença cada vez mais marcante, uma noite Lauro os viu em seu quarto e o pânico tomou conta de todo seu ser.

Desta vez ele não estava dormindo; muito bem acordado percebera que aquilo deixava de ser pesadelo para tornar-se realidade.

Sentia aquelas criaturas tocando seu corpo. Vozes ininteligíveis em tom de súplica.

Se era a sanidade dele que queriam, conseguiram.

O coitado acabou internado, mas sempre em companhia daqueles seres horrendos que às vezes apareciam em um silêncio sepulcral pelo qual enviavam uma mensagem de arrepiar o mais frio ou cético dos homens.

Onde quer que fosse, não podia ficar sozinho.

Era estar só que os arrepios e calafrios tomavam lugar. O pior é que o medo aumentava toda aquela sensação.

Estaria ele ficando louco?

Um homem feito, que passou a ter medo de ficar sozinho. Aquilo era demais para qualquer um.

Era começar a sentir um cheiro característico e ter a certeza do que iria se desenrolar dali em diante. O terror tomava conta.

Igrejas, orações, centros de mesa branca, terreiros... Tratamentos alternativos, orientais ou indígenas... tentara de tudo e tudo em vão.

Algum tempo depois, alguém chamou a polícia. Do apartamento de Lauro exalava um odor fétido e ele, há dias, não era visto por ninguém.

A polícia, ao entrar no apartamento, descobriu o corpo de Lauro estirado no chão do quarto. Em sua face, com os olhos ainda arregalados, uma fortíssima expressão de horror.

O que teria acontecido?

Todos imaginavam que alguém teria entrado lá para roubar, mas Lauro sabia o que houvera.

Do alto, junto com os mesmos seres que o atormentaram, Lauro, que agora fazia parte daquela agonia sobrenatural, via tudo o que se desenrolava dentro de seu antigo apartamento.

A remoção de seu corpo inerte, as especulações sobre o ocorrido, o choro dos entes queridos...

A preocupação agora era outra.

Dentro de seu sofrimento, fazia de tudo para que nenhum daqueles de quem gostava fosse o escolhido para um novo contato. Aquelas pobres almas, obrigadas a alimentar o mal com almas do bem, não tinham escolha.

Tomara que você não seja o próximo...

segunda-feira, 17 de março de 2014

Uma fabulosa vida livre

Vida livre MAR14Arthur vivia uma vida rústica. Tão rústica que para comer ele precisava caçar.

Mas era esta a vida que ele levava e curtia. Não queria saber de outra.

Não tinha contas a pagar, não devia satisfações a ninguém e era feliz.

Os dias passavam sendo vividos um a um. O negócio de Arthur era ser livre e feliz - o resto era resto.

Uma moradia super simples com o tamanho suficiente para acomodar alguns poucos primos ou o irmão que, às vezes, o visitavam.

As visitas aconteciam, invariavelmente, do jeito que Arthur mais gostava: duravam dois dias, no máximo. Desta forma o dia a dia do jovem com anseios de liberdade total não era prejudicado.

Dois dias bastavam para matar a saudade e pôr a conversa em dia. Passado este período já virava rotina e aí era invasão de privacidade e liberdade tolhida.

Dono de um viver simples e descompromissado, o jovem saía de casa logo cedo, andava a esmo pelos arredores e se visse uma caça, tratava de tentar abatê-la para garantir o almoço, ou a janta.

Tão livre era que, por vezes e até por preguiça, não voltava para casa. Dava um jeito de passar a noite onde estivesse.

Isso era liberdade total. Algo almejado por muitos e ele tinha. E como!

- Sou livre! Esta é a vida que eu sempre quis ter! Assim falava, consigo mesmo, um todo alegre Arthur.

Para ele, um vidão.

Se rolasse um sexo, legal. Se não, paciência - a vida continuava.

Mas..., pois é, sempre tem um mas, para temperar qualquer história... bem, voltemos ao texto.

Mas, um dia Arthur conheceu aquela que seria sua cara metade. Amélia era uma coisa de louco.

Linda, simpática, charmosa, atributos certos nos lugares certos. Ela mexeu com aquele solteirão convicto.

E ele cedeu notando que, sem haver percebido, faltava algo para ser completamente feliz: uma esposa, uma cúmplice com a qual poderia rir, chorar, dividir a vida.

De repente começou a sonhar com filhos, família, um modo de vida nada a ver com aquele que levava, mas que chegara a hora de conquistar. Mesmo porque a idade vinha chegando.

Depois de um curtíssimo período de paquera, de ambos os lados, passaram a namorar e ela aderiu totalmente àquele estilo rústico de vida do namorado.

O relacionamento foi ficando cada vez mais sério e acabou tomando um destino tradicional: iriam casar-se.

Como os pais de Amélia eram ultraconservadores, optaram por seguir fielmente a tradição e não pular qualquer degrau. Namoravam, ia pedir a mão dela, ficariam noivos e só depois casariam.

Assim, marcaram o dia para uma cerimônia íntima, só com os pais de Amélia, o irmão e um primo de Arthur, cerimônia na qual ficariam noivos. Era o segundo passo.

Com os preparativos prontos, faltava garantir a comida para os convivas.

Para isso, Arthur saiu cedo para caçar, conforme as regras que adotara em sua vida.

Foi difícil. O tempo passava e... nada. Aquilo temido pelo jovem caçador ia acontecendo, afinal a caça andava escassa por aquelas bandas.

Depois de algum tempo, Arthur conseguiu abater uma primeira presa, mas uma só não seria suficiente.

Algum tempo depois, a segunda e, aos “49 do segundo tempo”, uma terceira

Pronto, finalmente podia retornar à casa, onde Amélia e os convidados já deviam estar esperando. E com fome.

Quando chegou, Arthur foi tomado por uma grande surpresa, levando um tremendo susto.

Além dos quatro convidados, também compareceram três irmãos e dois primos de Amélia e mais cinco primos de Arthur, todos com ares de quem estava de estômago vazio reclamando por comida.

De um estático Arthur saíram, com muito esforço, as palavras:

- Poxa pessoal, só três baratas não vão alimentar 16 lagartixas!