quinta-feira, 24 de abril de 2014

Porto de Santos, um porto usado

Foto Raul SoaresO lado triste e humilhante da história do Porto

Há exatos 50 anos, na manhã de 24 de abril de 1964, um navio de casco negro apontou sua proa para a entrada do canal do estuário do Porto de Santos.

Puxado por dois rebocadores já que não possuía condições de navegar por si próprio, o navio, com o nome de Raul Soares, embrenhou-se pelo canal até as proximidades da ilha de Barnabé, onde fundeou sobre um banco de areia e ali ficou, estático, deitando sua sombra não só sobre as águas do canal mas por toda a Santos, simbolizando o que de mais terrível a ditadura poderia trazer para a cidade.

Em sua história, este navio reúne passagens gloriosas. Fora construído em 1900 na Alemanha e, batizado com o nome de Cap Verde, tinha capacidade para 488 passageiros e 100 tripulantes. Depois, rebatizado com o nome de Madeira, passou a ser utilizado como um navio misto - carga e passageiros - e, em 1925, já obsoleto, foi comprado pela companhia Lloyd Brasileiro.

Seus dias de maior glória aconteceram durante a II Guerra Mundial quando, como Raul Soares, transportou pracinhas da Força Expedicionária Brasileira para e da Europa.

Aposentado, recolhido e esquecido no cais de Mocanguê, no Rio de Janeiro, ele foi trazido para Santos pelo rebocador Tridente a fim de cumprir sua última e mais humilhante missão: servir, por ordem dos militares, como presídio no Porto de Santos.

Cinco dias após ter fundeado no canal do Porto, no meio da tarde, a lancha Bartolomeu de Gusmão, sob a atenta vigilância de soldados armados com metralhadoras, fazia o transbordo para o Raul Soares de seus primeiros “hóspedes”: 40 sargentos do exército que se tornaram os primeiros encarcerados no navio-presídio.

Centenas de pessoas acompanharam, do cais, o embarque dos primeiros “presos políticos” na tentativa de reconhecer entre eles alguns amigos ou parentes presos em algum lugar. Muitos desses amigos ou parentes realmente acabaram nos porões infectos antes que 1964 acabasse.

Em sua versão oficial, o governo alegava que o navio havia sido deslocado para Santos com o intuito de suprir a falta de presídios para abrigar as muitas pessoas detidas pela ditadura militar.

Contudo, mais forte que uma possível necessidade de fazer frente à crescente demanda de presídios, o Raul Soares era, acima de tudo, um símbolo colocado em uma cidade que, para os organizadores do golpe, representava grande perigo, afinal Santos era uma cidade que tinha vida cultural e política com brilho próprio, fazendo com que cada segmento fosse forte na conquista de seus espaços.

Em entrevista no final da década de 1980, pós-ditadura, Antonio Erasmo Dias, que em 1964, além de major do Exército, era um dos líderes militares do golpe de Estado na Baixada Santista, afirmou: “É claro que o Raul Soares não foi trazido para cá por necessidade de mais prisões. O motivo era psicológico, é evidente”.

Na visão dele, Santos era palco de um grande risco ao golpe. Era onde o esquerdismo adquirira uma força potencial que não existia no Brasil inteiro. “A Câmara de Santos era dominada pelos comunistas, o prefeito de Santos era ligado aos comunistas (...). Aqui tinha um tal de Fórum Sindical de Debates que parava Santos quando queria”.

Hoje, esta imagem de “Cidade Vermelha” ou ”República Sindicalista” que os militares queriam passar não resiste ao mais simples estudo histórico.

Com suas torturas físicas em que castigos impostos de forma gratuita eram proporcionais à rebeldia do preso e à coragem de reagir com dignidade aos maus tratos e humilhações e as psicológicas, quando dizia-se, por exemplo, que o navio seria rebocado para alto mar e nenhum preso voltaria, o Raul Soares foi um instrumento nas mãos dos militares desde aquele 24 de abril até 23 de outubro de 1964 quando foi desativado e a maioria dos presos foi libertada e processada, além de ter os direitos políticos cassados por dez anos.

Seis meses que deixaram uma mancha negra na história do Porto de Santos. Mancha que muitos preferem esquecer, mas que tem de ser lembrada até em respeito à memória daqueles que morreram, desapareceram ou sofreram a bordo daquele navio de casco negro.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Almas roubadas

A TrevaLauro teve uma vida tranquila até que completou seus 19 anos de idade.

A partir daí, coisas estranhas, muito estranhas começaram a fazer parte de seu dia a dia.

Tudo começou em um final de tarde de uma noite quente de verão.

Sozinho em casa e assistindo a um programa qualquer no televisor, sem dar-lhe importância, o rapaz sentiu um calafrio que gelou sua espinha.

Apesar de estranhar o ocorrido, Lauro não ligou para aquilo. Algo passageiro, imaginou.

Mas, a sensação permaneceu e o frio na espinha continuava.

Levantou-se, desligou o aparelho e foi tomar um banho, aprontar-se pois a noite prometia.

Ao entrar no banheiro, sentiu um frio imenso sem saber de onde poderia estar vindo, afinal era verão, não soprava uma brisa sequer e estava mesmo quente.

Ao tomar banho, ouviu algo que lhe pareceu sussurros dentro do banheiro.

Desligou o chuveiro, procurou auscultar com toda a atenção... nada. Silêncio total.

- O que foi isso? Parecia um choro, alguém cochichando algo com outro alguém... deve ter sido na vizinhança, imaginação minha, pensou consigo mesmo tentando tranquilizar-se.

Terminou o banho e, ao abrir a porta do box, pareceu-lhe ter visto um vulto escuro desaparecendo rapidamente. Aquilo fez o frio que sentia aumentar e o coração disparar com o susto.

Imaginação, com certeza. Vai ver era fruto do xampu que havia entrado em seus olhos deixando-os meio turvos, ardendo.

Enxugou-se e foi para o quarto.

Sentindo-se meio estranho e sonolento, deitou para um cochilo. Péssima ideia.

Foi tomado por pesadelos terríveis.

Seres para lá de estranhos começaram a formar-se à sua frente. Seres desfigurados de aparência tenebrosa que lhe esticavam as mãos como a pedir algo. Um cheiro muito estranho pairava no ar, um misto de flores velhas, velas e algo podre.

Acordou de sobressalto tentando entender tudo aquilo.

O resto dos dias foram iguais. As mesmas sensações o acompanhavam. Preferia ficar acordado a dormir, mas, não tinha jeito. Dormir era imprescindível e, aí, lá estavam eles novamente.

Com um sentimento de presença cada vez mais marcante, uma noite Lauro os viu em seu quarto e o pânico tomou conta de todo seu ser.

Desta vez ele não estava dormindo; muito bem acordado percebera que aquilo deixava de ser pesadelo para tornar-se realidade.

Sentia aquelas criaturas tocando seu corpo. Vozes ininteligíveis em tom de súplica.

Se era a sanidade dele que queriam, conseguiram.

O coitado acabou internado, mas sempre em companhia daqueles seres horrendos que às vezes apareciam em um silêncio sepulcral pelo qual enviavam uma mensagem de arrepiar o mais frio ou cético dos homens.

Onde quer que fosse, não podia ficar sozinho.

Era estar só que os arrepios e calafrios tomavam lugar. O pior é que o medo aumentava toda aquela sensação.

Estaria ele ficando louco?

Um homem feito, que passou a ter medo de ficar sozinho. Aquilo era demais para qualquer um.

Era começar a sentir um cheiro característico e ter a certeza do que iria se desenrolar dali em diante. O terror tomava conta.

Igrejas, orações, centros de mesa branca, terreiros... Tratamentos alternativos, orientais ou indígenas... tentara de tudo e tudo em vão.

Algum tempo depois, alguém chamou a polícia. Do apartamento de Lauro exalava um odor fétido e ele, há dias, não era visto por ninguém.

A polícia, ao entrar no apartamento, descobriu o corpo de Lauro estirado no chão do quarto. Em sua face, com os olhos ainda arregalados, uma fortíssima expressão de horror.

O que teria acontecido?

Todos imaginavam que alguém teria entrado lá para roubar, mas Lauro sabia o que houvera.

Do alto, junto com os mesmos seres que o atormentaram, Lauro, que agora fazia parte daquela agonia sobrenatural, via tudo o que se desenrolava dentro de seu antigo apartamento.

A remoção de seu corpo inerte, as especulações sobre o ocorrido, o choro dos entes queridos...

A preocupação agora era outra.

Dentro de seu sofrimento, fazia de tudo para que nenhum daqueles de quem gostava fosse o escolhido para um novo contato. Aquelas pobres almas, obrigadas a alimentar o mal com almas do bem, não tinham escolha.

Tomara que você não seja o próximo...