sexta-feira, 25 de julho de 2014

O menino que catava latas

Menino latasJosé nasceu pobre, pelas mãos de uma parteira, no coração de uma das favelas que fervilhavam naquela imensa cidade.

Brinquedos? Tinha-os, mas somente aqueles que ele próprio fazia ou inventava ou algum outro, já quebrado que aparecia por ali.

Assim, na vida de José, lata de sardinha era caminhão, cabo de vassoura, cavalo e por aí ia.

Ainda pequeno começou a frequentar o lixão com a mãe e os irmãos mais velhos.

A ler e a escrever aprendeu com uma tia, a qual já nas primeiras aulas, ficara espantada com a atuação, o interesse e a facilidade com que aquele menino franzino assimilava tudo.

As contas eram uma paixão à parte.

Uma noite, conversando com a mãe sobre as agruras da vida, ela lhe explicou que não havia agruras na vida deles. Era difícil, sim, ela concordava, mas, ao contrário de várias pessoas, eles tinham um lar, forças para viver e uma família que embora tivesse sido abandonada pelo pai, era bastante unida. Por isso, ela só tinha a agradecer.

Ao falar isso, a mãe acariciou-o na face e José notou aquelas mãos calejadas que nada lembravam as mãos de uma mulher. Sempre as vira antes, mas nunca reparara nelas como naquele momento.

Aquilo mexeu com o menino. Ele saiu do cômodo em que estavam (não podia chamar aquilo de sala) e foi chorar baixinho, tentando entender como a mãe conseguia.

Nisso, estancou o choro, olhou-se naquele pedaço de espelho quebrado, conversou consigo mesmo e tomou uma decisão.

Contava com 12 anos de idade, e, a partir daquela noite, continuou a ir para o lixão, mas com pensamentos bem diferentes daqueles de outrora.

Havia incutido na cabeça que aquilo não era vida para ele e, muito menos, para a mãe.

Com extrema facilidade, os cálculos fervilhavam e prosperavam em sua mente.

Sabia o que queria e como faria para tirar o melhor proveito daquela situação.

A vida dura havia maturado aquela criança, transformara-a em um jovem bastante ciente de suas responsabilidades.

Começou ali mesmo, no lixão, a desenvolver seu plano.

Chamou a criançada e propôs-lhes que pegassem todas as latinhas que encontrassem e as entregassem a ele. Ele iria cuidar de levar todo o material ao ferro velho, vender e depois pagaria o pessoal, tal qual uma cooperativa.

Convenceu a todas de que unidos, teriam mais força e, levando as latinhas, obteriam um preço melhor.

Como passo seguinte, foi a vários ferros velhos para fechar o negócio das vendas. Em um deles conseguiu um acordo excelente no qual, além de tudo o que levasse, ainda receberia uma comissão sobre o montante

E assim foi feito.

Sendo impossível pesar as latas no lixão, fez uns cálculos malucos em que pagava cada criança por lata catada - era o PLC de seu livro caixa.

O PLC era calculado com base na quantidade de lata por quilo e, no cômputo geral, ganhava uns 15% por quilo vendido que, somado à comissão recebida no ferro velho, chegava a um total de 20% sobre o valor de cada quilo.

Tudo o que entrava era dividido percentualmente. 60% iam para a mãe; 10% para os estudos; 5% para a diversão e 25% guardados de forma sagrada.

Para ele, não havia finais de semana ou feriado.

Aos sábados ia para a beira da represa onde, invariavelmente, os jovens deixavam várias latinhas para trás. Era só recolhê-las, com pressa, pois sempre havia a concorrência.

Nos domingos, era no campinho da várzea. Ajudava na lanchonete e guardava toda latinha consumida - duas fontes de renda, além das gorjetas.

Seis meses se passaram e José já levava as latinhas na caçamba de uma velha picape Fiat, adquirida com as poupanças e dirigida pelo tio Arnaldo.

Quando completou 18 anos, até o lixão tinha outra “cara”.

Aquele menino franzino expandira os negócios para além das latinhas.

Em um terreno próximo ao lixão, inicialmente alugado e depois comprado, montou uma central de triagem de lixo limpo na qual era separado tudo o que pudesse ser reciclado, mas que não fosse orgânico. Os principais itens eram alumínio, vidros, garrafas pet e papelão.

Enquanto montava a central de triagem, fez um trabalho de formiguinha, indo de casa em casa e conversando com o pessoal, primeiro dos arredores e depois com praticamente todo o bairro.

De forma persuasiva e citando várias justificativas amparadas pela conservação do meio ambiente, explicava que todo lixo limpo seria recolhido pela cooperativa do lixão, diariamente, para que fosse reaproveitado.

Bastava que o reciclável fosse depositado dentro dos sacos verdes que entregava ao final de cada conversa, pedindo que fossem postos na rua logo após a passagem do caminhão de lixo da prefeitura.

Com isso, o caminhão, a velha picape era coisa do passado, sempre dirigido pelo tio Arnaldo, passava pelas ruas recolhendo os sacos verdes.

Para José não havia moleza. Era trabalho de 10 a 12 horas diárias e escola à noite.

Com 25 anos de idade, José, formado em Administração de Empresas, não mais trabalha tanto, mas Trabalha - um dos primeiros a chegar e um dos últimos a sair.

Dono de duas usinas de reciclagem, deu emprego e estudo a toda aquela turma do lixão e é eternamente grato à sua mãe, uma guerreira que sustentou cinco filhos, sem marido, e fê-los homens e mulheres de bem, sem vícios.

Embora não se sinta realizado, pois há muito a ser feito ainda, José é feliz, especialmente por ter ajudado e melhorado a vida tanta gente.

A mãe? Ora, agora ela mora em um bom apartamento longe do lixão, com empregada, levando a vida que merecia há tempos, segundo dizeres do próprio José.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

O garoto que juntou dois mundos

Bilingue

O tão esperado nascimento de Ernesto foi motivo de festa na família.

O garotão chorou a plenos pulmões fazendo-se presente. Dos olhos do paizão, que acompanhara o parto, escorreram lágrimas de alegria.

Passados uns dois meses, com o bebezão crescendo firme e forte; algo estranho foi notado.

Ele dormia tranquilo no berço quando o vento fez com que a porta batesse com força. A mãe logo correu pois, com toda a certeza, aquilo iria assustar o bebê, fazendo-o acordar chorando.

O menino sequer se mexeu.

A mãe estranhou. Bateu palmas cada vez mais alto... nada.

Levaram ao médico que diagnosticou um grau de surdez do menino em mais de 90%.

Sem ouvir, o menino também não aprendeu a falar. Emitia sons ininteligíveis para a maioria das pessoas. Apenas os mais próximos, que conviviam o dia a dia com ele, o entendiam.

Passou a usar um aparelho, mas que não adiantava muita coisa. Ernesto estranhava aqueles sons misturados, os quais eram difíceis de identificar, e não o usava com frequência.

A comunicação era na base de ele tentar ler os lábios das pessoas, mas bastava um bigode um pouco mais comprido e a leitura labial era atrapalhada.

Ele desconhecia a Libras, Linguagem Brasileira de Sinais, e tinha dificuldade em comunicar-se também com outros deficientes auditivos.

Isso tudo fazia de Ernesto um menino sofrido, alguém que sentia o preconceito e vivia esforçando-se para fazer parte de um grupo.

Em silêncio, ele sofria ao ver os jovens da rua onde morava combinarem passeios ao shopping e, simplesmente, esquecerem-se de convidá-lo. Definitivamente aquilo não era bom.

Com o passar dos anos, uma novidade foi tentada: implante coclear.

Dirigiu-se a São Paulo e fez a operação, cara mas que valeria a pena - passaria a ouvir e, com isso, seria aceito normalmente no grupo de amigos.

Infelizmente Ernesto enfrentou algumas dificuldades no início e acabou deixando de lado o aparelho, fazendo com que a cirurgia não surtisse o efeito esperado.

Mais algum tempo e ele entra de cabeça na linguagem de sinais. Passa a frequentar os círculos dos deficientes auditivos, podendo comunicar-se com eles de igual para igual. Esquece o implante e vira parte do grupo.

Ao estar completamente engajado naquele meio, Ernesto percebe que algo não ia bem. Devia estar feliz pois era parte integrante de um grupo de amigos. Não entendia aquele sentimento.

Não entendeu até notar o mesmo preconceito sofrido diante das pessoas de audição perfeita, mas na ordem inversa - o grupo dos deficientes não se dava com os primeiros. Renegava-os.

Quem ouvia não era bem quisto naquele grupo e só o fato de ele um dia comentar que iria voltar a investir no implante coclear, para passar a ouvir e aprender a falar corretamente, foi motivo de desconfiança de alguns do grupo.

Ernesto não viu aquilo como um problema, mas sim como um mal que precisava ser mudado, e vencido, de ambos os lados.

Sem ligar para os comentários, voltou a usar o aparelho, frequentou fonoaudiólogos, aprendeu a distinguir os sons - acabou descobrindo que não era tão difícil quanto imaginara - e algum tempo depois já era dono de uma fala que todos entendiam sem maiores problemas.

Ele também aprendera a ouvir e passou a comunicar-se de forma fácil. Deu-se conta de que, antes de ser um deficiente auditivo, era bilíngue!

Em uma tarde de sábado, o shopping foi palco de um encontro marcado por Ernesto com os amigos, usando a desculpa de que iriam tomar um sorvete.

Lá estavam, sem que soubessem dos planos de Ernesto, os dois lados da moeda.

Primeiramente olhares desconfiados foram trocados, mas o valente menino soube se impor e mostrou a todos o valor de cada um e, principalmente, da possibilidade de uma convivência pacífica.

Claro que alguns problemas teriam de ser eliminados, mas o intuito daquela reunião era esse mesmo.

Ernesto, falando e gesticulando, explicou que todos poderiam conversar, era só eliminar as barreiras abstratas que cada um havia construído e tolhiam o bom relacionamento.

Claro, nem todos os surdos (assim identificados pelos “ouvintes”) poderiam passar a ouvir, mas todos aqueles que não eram deficientes auditivos (os ouvintes, como eram chamados pelos “surdos”) poderiam aprender Libras.

Aquele encontro foi um divisor de águas.

Com paciência, Ernesto foi dando dicas aos ouvintes, os quais logo se matricularam em cursos de Libras e em pouco tempo conversavam até entre si para praticar a nova língua.

Pelo lado dos surdos, aqueles com chance de passar a ouvir investiram e aprenderam, melhorando também a fala.

Algum tempo depois não existiam mais ouvintes ou surdos, apenas jovens formando um grande grupo de amigos.

O preconceito caíra por terra e todos concordavam:

Eram muito mais felizes assim.

domingo, 11 de maio de 2014

O Estupro

O Estupro MAI2014Meio tarde da noite e Cecília voltava da faculdade. Como sempre, pegou o mesmo ônibus, desceu no mesmo ponto e passou a caminhar as mesmas três quadras até sua casa.

Rotina para finalizar mais um dia de trabalho e estudos.

Mas, naquele fim de dia, algo lhe despertou a atenção. No silêncio da noite, havia um som que lembrava um choro de criança ou um filhote de cachorro.

Parou, prestou atenção e notou que aquele som vinha do prédio em construção distante duas quadras de sua casa.

Preocupada com o que pudesse ser, entrou no prédio para prestar a ajuda que pudesse, se fosse o caso.

Chamou por alguém... nada. Só o choro continuava e agora ela estava certa de se tratar de uma criança.

Mais alguns passos, e viu, num clarão, um rosto malévolo e sem qualquer ar amigável.

Na sequência, acompanhada do brilho da lâmina de uma grande faca, ouviu a ordem de não fazer barulho.

Mais 20 minutos e lá estava ela. Nua, sozinha, inerte, sem ação. Havia sido usada, sodomizada, estuprada de todas as maneiras.

Reuniu forças sem saber de onde, vestiu-se como pôde e foi para casa. De lá, um pai e uma mãe, extremamente chocados levaram-na ao hospital.

A partir daí, mais sofrimento.

Delegacia, BO, IML, exame de corpo de delito, interrogatórios... sentia-se um objeto. Queria calor humano, voltar para casa e tentar esquecer tudo aquilo.

Alguns dias se passam e ela é chamada à delegacia. Haviam prendido um suspeito e precisavam saber se ela o reconheceria.

Na delegacia, antes de ela chegar, o delegado chama o escrivão:

- Paulo Roberto, quero que você ponha mais quatro indivíduos junto ao suspeito. Só para termos segurança no reconhecimento.

- Tudo bem doutor, mas temos só três pessoas aqui na delegacia. Vai faltar um.

- Pegue alguém que esteja passando na rua. Diga que é para colaborar e não vai demorar nada.

- Ok, doutor.

Quando ela chega, vê os cinco “suspeitos” por um olho mágico e, de imediato, reconhece seu algoz.

Concomitantemente, um filme passa por sua cabeça. Revê cada detalhe, todas as cenas revestidas de brutalidade pelas quais passara.

- É o número três. Tenho certeza.

- Verdade, senhorita? Arguiu o delegado.

- Sim! Respondeu enfática.

- Temos um problema. Na certa você está confusa, pois o três não passa de um transeunte que pegamos ao acaso na rua e se dispôs a colaborar.

- Como assim? Perguntou uma incrédula Cecília.

- Ele é um pai de família - continuou o delegado - sem ficha policial, trabalhador e que só aceitou um pedido nosso para que participasse do reconhecimento fazendo-se passar por um dos suspeitos.

Em seguida, virou-se ao escrivão:

- Paulo Roberto, pode dispensar o sr. Acácio com nossos agradecimentos e desculpas.

Ela não se conformava. Aquilo não poderia estar acontecendo. Era um rosto que ficara gravado em sua memória - não havia engano.

Chorou ao vê-lo indo embora.

A mãe tentava conscientizá-la do engano pois, como o delegado falara, não era possível ser aquele homem. Ela estava sendo levada por impulsos oriundos dos sofrimentos pelos quais passou e ela precisava deixar a razão tomar conta.

Cecília mantinha pé firme: - É ele!

Paranhos, um investigador das antigas, achou muito estranha toda aquela convicção da moça e, por isso, resolveu seguir o cidadão.

Ao sair da delegacia, entrou em um bar e pediu um conhaque.

Paranhos entrou logo atrás e, casualmente, parou ao lado dele no balcão.

Puxou conversa dizendo que vira a cena, que a moça só podia estar equivocada devido ao trauma etc e tal.

Com a conversa, o investigador foi adquirindo a confiança daquele homem. Acácio, por sua vez, abria-se cada vez mais.

- Também fiquei chocado com a atitude dela. Quando topei ajudar jamais pensei que isso fosse acontecer.

- Pois é. Nós também e o coitado do delegado ficou sem saber o que fazer e achou melhor dispensá-lo logo. Com certeza é fruto do trauma sofrido. Temos de entender o lado psicológico em que ela vive no momento.

- É verdade, concordou Acácio. - Mas, venhamos e convenhamos, não é meu amigo? Como uma moça entra em um prédio em construção, tarde da noite, por que acha que ouviu o choro de uma criança? Há de se tomar muito cuidado com esse tipo de coisa.

- É verdade, “meu amigo”. Respondeu Paranhos. - Mas, me diga uma coisa: como você sabe desses detalhes se lá na delegacia ninguém falou nada sobre isso?

Sorte? Destino? Não se sabe, mas a faca encontrada em poder de Acácio e o exame de DNA provaram que Cecília estava certa.

sábado, 3 de maio de 2014

Por baixo do Bruto

Um ângulo diferente para se ver um Scania passando.

SCANIA BI-TREM conduzido pelo Claudenir, a quem agradeço a força e, claro, por não ter passado em cima da câmera. rrsss

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Lixo na lixeira

Apenas uma brincadeira com o Stop Motion.

Aja certo: lugar de lixo é na lixeira!

Afinal, se você não joga lixo no chão da sua casa, por que vai jogar no chão da “nossa casa”?

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Porto de Santos, um porto usado

Foto Raul SoaresO lado triste e humilhante da história do Porto

Há exatos 50 anos, na manhã de 24 de abril de 1964, um navio de casco negro apontou sua proa para a entrada do canal do estuário do Porto de Santos.

Puxado por dois rebocadores já que não possuía condições de navegar por si próprio, o navio, com o nome de Raul Soares, embrenhou-se pelo canal até as proximidades da ilha de Barnabé, onde fundeou sobre um banco de areia e ali ficou, estático, deitando sua sombra não só sobre as águas do canal mas por toda a Santos, simbolizando o que de mais terrível a ditadura poderia trazer para a cidade.

Em sua história, este navio reúne passagens gloriosas. Fora construído em 1900 na Alemanha e, batizado com o nome de Cap Verde, tinha capacidade para 488 passageiros e 100 tripulantes. Depois, rebatizado com o nome de Madeira, passou a ser utilizado como um navio misto - carga e passageiros - e, em 1925, já obsoleto, foi comprado pela companhia Lloyd Brasileiro.

Seus dias de maior glória aconteceram durante a II Guerra Mundial quando, como Raul Soares, transportou pracinhas da Força Expedicionária Brasileira para e da Europa.

Aposentado, recolhido e esquecido no cais de Mocanguê, no Rio de Janeiro, ele foi trazido para Santos pelo rebocador Tridente a fim de cumprir sua última e mais humilhante missão: servir, por ordem dos militares, como presídio no Porto de Santos.

Cinco dias após ter fundeado no canal do Porto, no meio da tarde, a lancha Bartolomeu de Gusmão, sob a atenta vigilância de soldados armados com metralhadoras, fazia o transbordo para o Raul Soares de seus primeiros “hóspedes”: 40 sargentos do exército que se tornaram os primeiros encarcerados no navio-presídio.

Centenas de pessoas acompanharam, do cais, o embarque dos primeiros “presos políticos” na tentativa de reconhecer entre eles alguns amigos ou parentes presos em algum lugar. Muitos desses amigos ou parentes realmente acabaram nos porões infectos antes que 1964 acabasse.

Em sua versão oficial, o governo alegava que o navio havia sido deslocado para Santos com o intuito de suprir a falta de presídios para abrigar as muitas pessoas detidas pela ditadura militar.

Contudo, mais forte que uma possível necessidade de fazer frente à crescente demanda de presídios, o Raul Soares era, acima de tudo, um símbolo colocado em uma cidade que, para os organizadores do golpe, representava grande perigo, afinal Santos era uma cidade que tinha vida cultural e política com brilho próprio, fazendo com que cada segmento fosse forte na conquista de seus espaços.

Em entrevista no final da década de 1980, pós-ditadura, Antonio Erasmo Dias, que em 1964, além de major do Exército, era um dos líderes militares do golpe de Estado na Baixada Santista, afirmou: “É claro que o Raul Soares não foi trazido para cá por necessidade de mais prisões. O motivo era psicológico, é evidente”.

Na visão dele, Santos era palco de um grande risco ao golpe. Era onde o esquerdismo adquirira uma força potencial que não existia no Brasil inteiro. “A Câmara de Santos era dominada pelos comunistas, o prefeito de Santos era ligado aos comunistas (...). Aqui tinha um tal de Fórum Sindical de Debates que parava Santos quando queria”.

Hoje, esta imagem de “Cidade Vermelha” ou ”República Sindicalista” que os militares queriam passar não resiste ao mais simples estudo histórico.

Com suas torturas físicas em que castigos impostos de forma gratuita eram proporcionais à rebeldia do preso e à coragem de reagir com dignidade aos maus tratos e humilhações e as psicológicas, quando dizia-se, por exemplo, que o navio seria rebocado para alto mar e nenhum preso voltaria, o Raul Soares foi um instrumento nas mãos dos militares desde aquele 24 de abril até 23 de outubro de 1964 quando foi desativado e a maioria dos presos foi libertada e processada, além de ter os direitos políticos cassados por dez anos.

Seis meses que deixaram uma mancha negra na história do Porto de Santos. Mancha que muitos preferem esquecer, mas que tem de ser lembrada até em respeito à memória daqueles que morreram, desapareceram ou sofreram a bordo daquele navio de casco negro.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Almas roubadas

A TrevaLauro teve uma vida tranquila até que completou seus 19 anos de idade.

A partir daí, coisas estranhas, muito estranhas começaram a fazer parte de seu dia a dia.

Tudo começou em um final de tarde de uma noite quente de verão.

Sozinho em casa e assistindo a um programa qualquer no televisor, sem dar-lhe importância, o rapaz sentiu um calafrio que gelou sua espinha.

Apesar de estranhar o ocorrido, Lauro não ligou para aquilo. Algo passageiro, imaginou.

Mas, a sensação permaneceu e o frio na espinha continuava.

Levantou-se, desligou o aparelho e foi tomar um banho, aprontar-se pois a noite prometia.

Ao entrar no banheiro, sentiu um frio imenso sem saber de onde poderia estar vindo, afinal era verão, não soprava uma brisa sequer e estava mesmo quente.

Ao tomar banho, ouviu algo que lhe pareceu sussurros dentro do banheiro.

Desligou o chuveiro, procurou auscultar com toda a atenção... nada. Silêncio total.

- O que foi isso? Parecia um choro, alguém cochichando algo com outro alguém... deve ter sido na vizinhança, imaginação minha, pensou consigo mesmo tentando tranquilizar-se.

Terminou o banho e, ao abrir a porta do box, pareceu-lhe ter visto um vulto escuro desaparecendo rapidamente. Aquilo fez o frio que sentia aumentar e o coração disparar com o susto.

Imaginação, com certeza. Vai ver era fruto do xampu que havia entrado em seus olhos deixando-os meio turvos, ardendo.

Enxugou-se e foi para o quarto.

Sentindo-se meio estranho e sonolento, deitou para um cochilo. Péssima ideia.

Foi tomado por pesadelos terríveis.

Seres para lá de estranhos começaram a formar-se à sua frente. Seres desfigurados de aparência tenebrosa que lhe esticavam as mãos como a pedir algo. Um cheiro muito estranho pairava no ar, um misto de flores velhas, velas e algo podre.

Acordou de sobressalto tentando entender tudo aquilo.

O resto dos dias foram iguais. As mesmas sensações o acompanhavam. Preferia ficar acordado a dormir, mas, não tinha jeito. Dormir era imprescindível e, aí, lá estavam eles novamente.

Com um sentimento de presença cada vez mais marcante, uma noite Lauro os viu em seu quarto e o pânico tomou conta de todo seu ser.

Desta vez ele não estava dormindo; muito bem acordado percebera que aquilo deixava de ser pesadelo para tornar-se realidade.

Sentia aquelas criaturas tocando seu corpo. Vozes ininteligíveis em tom de súplica.

Se era a sanidade dele que queriam, conseguiram.

O coitado acabou internado, mas sempre em companhia daqueles seres horrendos que às vezes apareciam em um silêncio sepulcral pelo qual enviavam uma mensagem de arrepiar o mais frio ou cético dos homens.

Onde quer que fosse, não podia ficar sozinho.

Era estar só que os arrepios e calafrios tomavam lugar. O pior é que o medo aumentava toda aquela sensação.

Estaria ele ficando louco?

Um homem feito, que passou a ter medo de ficar sozinho. Aquilo era demais para qualquer um.

Era começar a sentir um cheiro característico e ter a certeza do que iria se desenrolar dali em diante. O terror tomava conta.

Igrejas, orações, centros de mesa branca, terreiros... Tratamentos alternativos, orientais ou indígenas... tentara de tudo e tudo em vão.

Algum tempo depois, alguém chamou a polícia. Do apartamento de Lauro exalava um odor fétido e ele, há dias, não era visto por ninguém.

A polícia, ao entrar no apartamento, descobriu o corpo de Lauro estirado no chão do quarto. Em sua face, com os olhos ainda arregalados, uma fortíssima expressão de horror.

O que teria acontecido?

Todos imaginavam que alguém teria entrado lá para roubar, mas Lauro sabia o que houvera.

Do alto, junto com os mesmos seres que o atormentaram, Lauro, que agora fazia parte daquela agonia sobrenatural, via tudo o que se desenrolava dentro de seu antigo apartamento.

A remoção de seu corpo inerte, as especulações sobre o ocorrido, o choro dos entes queridos...

A preocupação agora era outra.

Dentro de seu sofrimento, fazia de tudo para que nenhum daqueles de quem gostava fosse o escolhido para um novo contato. Aquelas pobres almas, obrigadas a alimentar o mal com almas do bem, não tinham escolha.

Tomara que você não seja o próximo...