José nasceu pobre, pelas mãos de uma parteira, no coração de uma das favelas que fervilhavam naquela imensa cidade.
Brinquedos? Tinha-os, mas somente aqueles que ele próprio fazia ou inventava ou algum outro, já quebrado que aparecia por ali.
Assim, na vida de José, lata de sardinha era caminhão, cabo de vassoura, cavalo e por aí ia.
Ainda pequeno começou a frequentar o lixão com a mãe e os irmãos mais velhos.
A ler e a escrever aprendeu com uma tia, a qual já nas primeiras aulas, ficara espantada com a atuação, o interesse e a facilidade com que aquele menino franzino assimilava tudo.
As contas eram uma paixão à parte.
Uma noite, conversando com a mãe sobre as agruras da vida, ela lhe explicou que não havia agruras na vida deles. Era difícil, sim, ela concordava, mas, ao contrário de várias pessoas, eles tinham um lar, forças para viver e uma família que embora tivesse sido abandonada pelo pai, era bastante unida. Por isso, ela só tinha a agradecer.
Ao falar isso, a mãe acariciou-o na face e José notou aquelas mãos calejadas que nada lembravam as mãos de uma mulher. Sempre as vira antes, mas nunca reparara nelas como naquele momento.
Aquilo mexeu com o menino. Ele saiu do cômodo em que estavam (não podia chamar aquilo de sala) e foi chorar baixinho, tentando entender como a mãe conseguia.
Nisso, estancou o choro, olhou-se naquele pedaço de espelho quebrado, conversou consigo mesmo e tomou uma decisão.
Contava com 12 anos de idade, e, a partir daquela noite, continuou a ir para o lixão, mas com pensamentos bem diferentes daqueles de outrora.
Havia incutido na cabeça que aquilo não era vida para ele e, muito menos, para a mãe.
Com extrema facilidade, os cálculos fervilhavam e prosperavam em sua mente.
Sabia o que queria e como faria para tirar o melhor proveito daquela situação.
A vida dura havia maturado aquela criança, transformara-a em um jovem bastante ciente de suas responsabilidades.
Começou ali mesmo, no lixão, a desenvolver seu plano.
Chamou a criançada e propôs-lhes que pegassem todas as latinhas que encontrassem e as entregassem a ele. Ele iria cuidar de levar todo o material ao ferro velho, vender e depois pagaria o pessoal, tal qual uma cooperativa.
Convenceu a todas de que unidos, teriam mais força e, levando as latinhas, obteriam um preço melhor.
Como passo seguinte, foi a vários ferros velhos para fechar o negócio das vendas. Em um deles conseguiu um acordo excelente no qual, além de tudo o que levasse, ainda receberia uma comissão sobre o montante
E assim foi feito.
Sendo impossível pesar as latas no lixão, fez uns cálculos malucos em que pagava cada criança por lata catada - era o PLC de seu livro caixa.
O PLC era calculado com base na quantidade de lata por quilo e, no cômputo geral, ganhava uns 15% por quilo vendido que, somado à comissão recebida no ferro velho, chegava a um total de 20% sobre o valor de cada quilo.
Tudo o que entrava era dividido percentualmente. 60% iam para a mãe; 10% para os estudos; 5% para a diversão e 25% guardados de forma sagrada.
Para ele, não havia finais de semana ou feriado.
Aos sábados ia para a beira da represa onde, invariavelmente, os jovens deixavam várias latinhas para trás. Era só recolhê-las, com pressa, pois sempre havia a concorrência.
Nos domingos, era no campinho da várzea. Ajudava na lanchonete e guardava toda latinha consumida - duas fontes de renda, além das gorjetas.
Seis meses se passaram e José já levava as latinhas na caçamba de uma velha picape Fiat, adquirida com as poupanças e dirigida pelo tio Arnaldo.
Quando completou 18 anos, até o lixão tinha outra “cara”.
Aquele menino franzino expandira os negócios para além das latinhas.
Em um terreno próximo ao lixão, inicialmente alugado e depois comprado, montou uma central de triagem de lixo limpo na qual era separado tudo o que pudesse ser reciclado, mas que não fosse orgânico. Os principais itens eram alumínio, vidros, garrafas pet e papelão.
Enquanto montava a central de triagem, fez um trabalho de formiguinha, indo de casa em casa e conversando com o pessoal, primeiro dos arredores e depois com praticamente todo o bairro.
De forma persuasiva e citando várias justificativas amparadas pela conservação do meio ambiente, explicava que todo lixo limpo seria recolhido pela cooperativa do lixão, diariamente, para que fosse reaproveitado.
Bastava que o reciclável fosse depositado dentro dos sacos verdes que entregava ao final de cada conversa, pedindo que fossem postos na rua logo após a passagem do caminhão de lixo da prefeitura.
Com isso, o caminhão, a velha picape era coisa do passado, sempre dirigido pelo tio Arnaldo, passava pelas ruas recolhendo os sacos verdes.
Para José não havia moleza. Era trabalho de 10 a 12 horas diárias e escola à noite.
Com 25 anos de idade, José, formado em Administração de Empresas, não mais trabalha tanto, mas Trabalha - um dos primeiros a chegar e um dos últimos a sair.
Dono de duas usinas de reciclagem, deu emprego e estudo a toda aquela turma do lixão e é eternamente grato à sua mãe, uma guerreira que sustentou cinco filhos, sem marido, e fê-los homens e mulheres de bem, sem vícios.
Embora não se sinta realizado, pois há muito a ser feito ainda, José é feliz, especialmente por ter ajudado e melhorado a vida tanta gente.
A mãe? Ora, agora ela mora em um bom apartamento longe do lixão, com empregada, levando a vida que merecia há tempos, segundo dizeres do próprio José.
4 comentários:
Gostei muito do seu conto, conto com muitos mais Carlos, obrigada.
Muito bom!
É maravilhoso!
Um conto prazeroso de se ler em que temas importantes foram abordados, como família, estudo, trabalho, meio ambiente e honestidade, tudo num estilo que já lhe é peculiar.
Parabéns e obrigado por este momento de deleite.
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