O tão esperado nascimento de Ernesto foi motivo de festa na família.
O garotão chorou a plenos pulmões fazendo-se presente. Dos olhos do paizão, que acompanhara o parto, escorreram lágrimas de alegria.
Passados uns dois meses, com o bebezão crescendo firme e forte; algo estranho foi notado.
Ele dormia tranquilo no berço quando o vento fez com que a porta batesse com força. A mãe logo correu pois, com toda a certeza, aquilo iria assustar o bebê, fazendo-o acordar chorando.
O menino sequer se mexeu.
A mãe estranhou. Bateu palmas cada vez mais alto... nada.
Levaram ao médico que diagnosticou um grau de surdez do menino em mais de 90%.
Sem ouvir, o menino também não aprendeu a falar. Emitia sons ininteligíveis para a maioria das pessoas. Apenas os mais próximos, que conviviam o dia a dia com ele, o entendiam.
Passou a usar um aparelho, mas que não adiantava muita coisa. Ernesto estranhava aqueles sons misturados, os quais eram difíceis de identificar, e não o usava com frequência.
A comunicação era na base de ele tentar ler os lábios das pessoas, mas bastava um bigode um pouco mais comprido e a leitura labial era atrapalhada.
Ele desconhecia a Libras, Linguagem Brasileira de Sinais, e tinha dificuldade em comunicar-se também com outros deficientes auditivos.
Isso tudo fazia de Ernesto um menino sofrido, alguém que sentia o preconceito e vivia esforçando-se para fazer parte de um grupo.
Em silêncio, ele sofria ao ver os jovens da rua onde morava combinarem passeios ao shopping e, simplesmente, esquecerem-se de convidá-lo. Definitivamente aquilo não era bom.
Com o passar dos anos, uma novidade foi tentada: implante coclear.
Dirigiu-se a São Paulo e fez a operação, cara mas que valeria a pena - passaria a ouvir e, com isso, seria aceito normalmente no grupo de amigos.
Infelizmente Ernesto enfrentou algumas dificuldades no início e acabou deixando de lado o aparelho, fazendo com que a cirurgia não surtisse o efeito esperado.
Mais algum tempo e ele entra de cabeça na linguagem de sinais. Passa a frequentar os círculos dos deficientes auditivos, podendo comunicar-se com eles de igual para igual. Esquece o implante e vira parte do grupo.
Ao estar completamente engajado naquele meio, Ernesto percebe que algo não ia bem. Devia estar feliz pois era parte integrante de um grupo de amigos. Não entendia aquele sentimento.
Não entendeu até notar o mesmo preconceito sofrido diante das pessoas de audição perfeita, mas na ordem inversa - o grupo dos deficientes não se dava com os primeiros. Renegava-os.
Quem ouvia não era bem quisto naquele grupo e só o fato de ele um dia comentar que iria voltar a investir no implante coclear, para passar a ouvir e aprender a falar corretamente, foi motivo de desconfiança de alguns do grupo.
Ernesto não viu aquilo como um problema, mas sim como um mal que precisava ser mudado, e vencido, de ambos os lados.
Sem ligar para os comentários, voltou a usar o aparelho, frequentou fonoaudiólogos, aprendeu a distinguir os sons - acabou descobrindo que não era tão difícil quanto imaginara - e algum tempo depois já era dono de uma fala que todos entendiam sem maiores problemas.
Ele também aprendera a ouvir e passou a comunicar-se de forma fácil. Deu-se conta de que, antes de ser um deficiente auditivo, era bilíngue!
Em uma tarde de sábado, o shopping foi palco de um encontro marcado por Ernesto com os amigos, usando a desculpa de que iriam tomar um sorvete.
Lá estavam, sem que soubessem dos planos de Ernesto, os dois lados da moeda.
Primeiramente olhares desconfiados foram trocados, mas o valente menino soube se impor e mostrou a todos o valor de cada um e, principalmente, da possibilidade de uma convivência pacífica.
Claro que alguns problemas teriam de ser eliminados, mas o intuito daquela reunião era esse mesmo.
Ernesto, falando e gesticulando, explicou que todos poderiam conversar, era só eliminar as barreiras abstratas que cada um havia construído e tolhiam o bom relacionamento.
Claro, nem todos os surdos (assim identificados pelos “ouvintes”) poderiam passar a ouvir, mas todos aqueles que não eram deficientes auditivos (os ouvintes, como eram chamados pelos “surdos”) poderiam aprender Libras.
Aquele encontro foi um divisor de águas.
Com paciência, Ernesto foi dando dicas aos ouvintes, os quais logo se matricularam em cursos de Libras e em pouco tempo conversavam até entre si para praticar a nova língua.
Pelo lado dos surdos, aqueles com chance de passar a ouvir investiram e aprenderam, melhorando também a fala.
Algum tempo depois não existiam mais ouvintes ou surdos, apenas jovens formando um grande grupo de amigos.
O preconceito caíra por terra e todos concordavam:
Eram muito mais felizes assim.
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