O lado triste e humilhante da história do Porto
Há exatos 50 anos, na manhã de 24 de abril de 1964, um navio de casco negro apontou sua proa para a entrada do canal do estuário do Porto de Santos.
Puxado por dois rebocadores já que não possuía condições de navegar por si próprio, o navio, com o nome de Raul Soares, embrenhou-se pelo canal até as proximidades da ilha de Barnabé, onde fundeou sobre um banco de areia e ali ficou, estático, deitando sua sombra não só sobre as águas do canal mas por toda a Santos, simbolizando o que de mais terrível a ditadura poderia trazer para a cidade.
Em sua história, este navio reúne passagens gloriosas. Fora construído em 1900 na Alemanha e, batizado com o nome de Cap Verde, tinha capacidade para 488 passageiros e 100 tripulantes. Depois, rebatizado com o nome de Madeira, passou a ser utilizado como um navio misto - carga e passageiros - e, em 1925, já obsoleto, foi comprado pela companhia Lloyd Brasileiro.
Seus dias de maior glória aconteceram durante a II Guerra Mundial quando, como Raul Soares, transportou pracinhas da Força Expedicionária Brasileira para e da Europa.
Aposentado, recolhido e esquecido no cais de Mocanguê, no Rio de Janeiro, ele foi trazido para Santos pelo rebocador Tridente a fim de cumprir sua última e mais humilhante missão: servir, por ordem dos militares, como presídio no Porto de Santos.
Cinco dias após ter fundeado no canal do Porto, no meio da tarde, a lancha Bartolomeu de Gusmão, sob a atenta vigilância de soldados armados com metralhadoras, fazia o transbordo para o Raul Soares de seus primeiros “hóspedes”: 40 sargentos do exército que se tornaram os primeiros encarcerados no navio-presídio.
Centenas de pessoas acompanharam, do cais, o embarque dos primeiros “presos políticos” na tentativa de reconhecer entre eles alguns amigos ou parentes presos em algum lugar. Muitos desses amigos ou parentes realmente acabaram nos porões infectos antes que 1964 acabasse.
Em sua versão oficial, o governo alegava que o navio havia sido deslocado para Santos com o intuito de suprir a falta de presídios para abrigar as muitas pessoas detidas pela ditadura militar.
Contudo, mais forte que uma possível necessidade de fazer frente à crescente demanda de presídios, o Raul Soares era, acima de tudo, um símbolo colocado em uma cidade que, para os organizadores do golpe, representava grande perigo, afinal Santos era uma cidade que tinha vida cultural e política com brilho próprio, fazendo com que cada segmento fosse forte na conquista de seus espaços.
Em entrevista no final da década de 1980, pós-ditadura, Antonio Erasmo Dias, que em 1964, além de major do Exército, era um dos líderes militares do golpe de Estado na Baixada Santista, afirmou: “É claro que o Raul Soares não foi trazido para cá por necessidade de mais prisões. O motivo era psicológico, é evidente”.
Na visão dele, Santos era palco de um grande risco ao golpe. Era onde o esquerdismo adquirira uma força potencial que não existia no Brasil inteiro. “A Câmara de Santos era dominada pelos comunistas, o prefeito de Santos era ligado aos comunistas (...). Aqui tinha um tal de Fórum Sindical de Debates que parava Santos quando queria”.
Hoje, esta imagem de “Cidade Vermelha” ou ”República Sindicalista” que os militares queriam passar não resiste ao mais simples estudo histórico.
Com suas torturas físicas em que castigos impostos de forma gratuita eram proporcionais à rebeldia do preso e à coragem de reagir com dignidade aos maus tratos e humilhações e as psicológicas, quando dizia-se, por exemplo, que o navio seria rebocado para alto mar e nenhum preso voltaria, o Raul Soares foi um instrumento nas mãos dos militares desde aquele 24 de abril até 23 de outubro de 1964 quando foi desativado e a maioria dos presos foi libertada e processada, além de ter os direitos políticos cassados por dez anos.
Seis meses que deixaram uma mancha negra na história do Porto de Santos. Mancha que muitos preferem esquecer, mas que tem de ser lembrada até em respeito à memória daqueles que morreram, desapareceram ou sofreram a bordo daquele navio de casco negro.
3 comentários:
Muito bonito e desconhecia os detalhes. Parabéns primo.
Tantas páginas negras nessa nossa história! Parabéns por nos lembrar..."Todos os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático." (Cioran)
Abraços da Ludmila
Vivendo e aprendendo.
Obrigado Carlos.
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