Conto baseado em uma antiga parábola
Beto sempre foi muito amado pelos pais e, até por isso, mimado.
Os pais, posseiros, trabalhavam duro em uma gleba com cerca de um hectare - ou 10 mil metros quadrados, para quem não conhece as medidas do campo.
Dali tiravam o sustento da família composta pelos pais, o Beto e mais três irmãos mais jovens.
Plantavam de acordo com a temporada, sempre fazendo um rodízio para não cansar o solo e garantir uma maior produtividade. Sol a sol, sem descanso.
No terreno havia a casinha da família, um galinheiro, um chiqueiro e um celeiro não muito grande, mas suficiente para o pai guardar ali todas as ferramentas que possuíam.
Os pais haviam feito uma promessa a si próprios e a São José, padroeiro dos agricultores: os filhos estudariam e não teriam aquela vida sofrida que os fazia envelhecer precocemente. Os filhos seriam “doutores”.
Claro que, desde cedo, as crianças ajudavam nos tratos da roça, até porque não poderiam ficar sozinhas em casa sem quem delas cuidasse.
A vida era dura. Acordavam às 4 horas da manhã, tomavam um rápido café preto com pão e partiam para a lida. A mãe ainda ficava um pouco na casa para cuidar do almoço que era levado até eles com a ajuda dos pequenos. Afonso e os filhos mais velhos, Beto e Alaor, desde cedo cuidavam do cultivo. Os filhos só paravam para irem à escola.
Os mais jovens, enquanto a mãe preparava o almoço, iam dando milho às galinhas, completavam a água dos porcos e jogavam, nos comedouros do chiqueiro, tudo que era resto de comida e o que mais fosse comível.
Durante a tarde, invariavelmente, o filho do vizinho passava com a charrete e lá iam, Beto ou Alaor, acompanhando-o até a cidade para buscarem restos de comida para dar aos porcos das duas propriedades. Assim complementavam a alimentação dos bichos.
Mimado, Beto era meio rebelde no trato com os pais, mas isso, para os pais, era compensado pelos estudos. Ele não queria aquela vida para si e assim estudava sempre que podia e tirava ótimas notas.
Garantiria seu futuro.
Ao completar 19 anos, Beto, já formado nos ensino médio, partiu em busca de um futuro melhor. Conseguiu uma bolsa na faculdade e foi morar na cidade grande.
Trabalho de dia e estudos à noite. Não tinha descanso, mas sabia que era a melhor aposta para garantir um bom futuro.
No final do ano, férias, voltou para a casa dos pais duas semanas antes do Natal.
E chegou reclamando da vida, afinal todos os amigos iam de carro para a faculdade e ele, de bicicleta. Era vexatório.
Os pais pediam-lhe calma, pois tudo aquilo, um dia, se ajustaria.
- Como? Bradava ele. - Vocês vivem esta vidinha aqui, sem qualquer perspectiva de futuro. Parem de sonhar. – Eu queria é ter um pai rico que gostasse mesmo de mim e me desse um carro no Natal. Isso sim é sonho!
O pai, cabisbaixo e sem ter o que falar, retirou-se para o quarto.
A mãe foi chorar na cozinha, desabafando no fogão à lenha.
Os irmãos olhavam para Beto com muita raiva. Logo ele, o mais privilegiado de todos reclamava daquele jeito, sem reconhecer tudo o que os pais fizeram e faziam por ele e por todos.
Noite de 25 de dezembro, reunidos em torno da árvore de Natal, os pais entregam os presentes aos filhos.
Ao Beto coube a chave do celeiro com um pequeno cartão de natal que dizia:
-- Amado Beto, a você entregamos nosso celeiro e é seu tudo o que há dentro dele. Esperamos que você possa aproveitar muito. Amamos você. Afonso, Marlene e seus irmãos. FELIZ NATAL!
Beto foi tomado por um acesso de raiva. Não acreditava que os pais estavam fazendo aquilo - dar-lhe o celeiro e todas as ferramentas? Para quê se tudo o que ele queria era estar longe daquela vida?
Dia seguinte, ainda com raiva, partiu logo cedo de volta para a cidade. Queria esquecer aquele Natal em família. Família? Pois sim.
Definitivamente o Natal de 1993 seria apagado da mente dele.
Transcorridos 10 anos, Beto, já formado e trabalhando como um dos melhores advogados daquele escritório de advocacia, recebe uma ligação inesperada.
Era Alaor informando que Afonso estava nas últimas e pedia para ver o filho mais velho que, desde aquele Natal, não vira mais.
Toda aquela lembrança veio à mente de Beto e sentiu um certo remorso pelo que havia feito - na época não entendera o gesto dos pais e tudo, de repente, caiu como um balde de água gelada.
Como pudera fazer aquilo? Tinha de reconhecer e respeitar os limites dos pais, afinal eles não tinham estudo e sacrificaram-se pelos filhos.
Beto voltou ao sítio dos pais com um aperto no coração.
Não chegou a tempo de ver o pai vivo. Afonso, antes de morrer e prevendo que não iria ver Beto, deixou-lhe um bilhete.
-- Meu filho, o celeiro ainda é seu. Faça ao menos um favor ao seu velho, entre nele, veja o que há por lá, se alguma coisa ainda lhe servir, use. Se não, dê aos seus irmãos – só você poder fazer isso, pois tudo lá é seu.
Com o coração apertado, Beto entrou no celeiro e viu, ainda com os laços azuis, um gol prata, ano 1993, 0km. Junto um carnê de consórcio com 60 prestações pagas, a maioria com atraso.
Beto chorou ao entender o por quê de os pais nunca terem dinheiro.
Sentiu que era tarde demais.Como poderia agradecer por aquilo?
2 comentários:
O fato de conhecer a parábola tirou elemento surpresa, tua característica, mas nem por isso tirou o entusiasmo de ler até o final.
A maestria com que narras faz com que a gente viaje pelo campo e pelo tempo.
Adorei e fica a lição de que devemos tomar cuidado com nossas atitudes pois as vezes não há tempo de remediá-las.
Agradeço o atendimento a minha solicitação. ass. primo mais véio. kkkkkk
Muito bom, tio. Lendo este conto, percebo o quanto o consumismo e o egoísmo contribuem para a desvalorização da família, das pequenas coisas que formam a base da nossa história, dando a falsa impressão de que as pessoas são descartáveis e nos fazendo esquecer do que de fato é importante. Respeito, reconhecimento e principalmente o amor devem fazer parte do nosso cotidiano. No fim das contas, não são os bens que conquistamos, são as pessoas que nos cercam que fazem nossa história valer a pena.
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